“Para uma Teoria Libertária do Poder” é uma série de resenhas elaboradas sobre artigos ou livros de autores do campo libertário que discutem o poder. Seu objetivo é apresentar uma leitura contemporânea de autores que vêm tratando o tema em questão e trazer elementos para a elaboração de uma teoria libertária do poder, que poderá contribuir na elaboração de um método de análise da realidade e de estratégias de bases libertárias, a serem utilizadas por indivíduos e organizações.
Neste terceiro artigo da série, utilizarei para discussão um conjunto de artigos de Michel Foucault presentes em dois livros: Microfísica do Poder e Estratégia Poder-Saber.
Ainda
que as reflexões de Foucault sobre o poder estejam presentes em
diversos livros e artigos, ligados sempre à maneira prática que ele
encontra para a aplicação de suas análises – em casos específicos do
poder na medicina, na psiquiatria, na sexualidade, etc. –, tentarei
extrair, em linhas gerais, os principais argumentos teóricos de sua
discussão sobre o poder desses textos, sem discutir suas aplicações
práticas.[1]
É importante ter em mente que os pontos de vista aqui colocados constituem muito mais uma hipótese
sobre a teoria de Foucault sobre o poder do que uma síntese que
interpreta profundamente o conjunto de seu pensamento. Seria impossível
realizar uma interpretação ampla de suas posições acerca do poder sem a
leitura da maior parte de sua obra, o que outros autores fizeram muito
bem a meu ver.[2] Portanto, meu objetivo com o artigo não é dar uma
idéia sobre a concepção geral de poder em Foucault, mas constituir uma
hipótese, fundamentada na bibliografia citada, de elementos que
contribuam de maneira mais ampla com uma teoria libertária do poder.
Realizarei, nesse sentido, exercícios teóricos com o intuito de
responder questões que o próprio autor não respondeu em seu tempo, e
certamente teve seus motivos para isso. Finalmente, farei uma leitura
desses artigos utilizando-me de categorias que não pertencem ao campo
de análise de Foucault; assim, será evidente o enquadramento e a
classificação com base em categorias exteriores ao seu sistema teórico,
e que podem não lhe ser familiares ou mesmo ter divergências de sua
parte. O que, a meu ver não invalida a análise realizada.[3]
A necessidade de instrumentos para a análise do poder
Foucault acredita que há uma necessidade central de se “pensar esse
problema do poder”, assim como a “ausência de instrumentos conceituais
para pensá-lo”[EPS, p. 226]; ou seja, haveria a “insuficiência de uma
análise estratégica própria à luta política – à luta no campo do poder
político”[EPS, p. 251]. Para ele, “o poder, em suas estratégias, ao
mesmo tempo gerais e sutis, em seus mecanismos, nunca foi muito
estudado”.[MP, p. 141] É nesse sentido que considera um de seus
principais problemas teóricos, “forjar instrumentos de análise [...]
sobre a realidade que nos é contemporânea e sobre nós mesmos”[EPS, p.
240].
Uma teoria sobre o poder, nesse sentido, teria como papel “não formular
a sistemática global que repõe tudo no lugar, mas analisar a
especificidade dos mecanismos de poder, balizar as ligações, as
extensões, edificar pouco a pouco um saber estratégico”[EPS, p. 251].
Esse é o foco teórico que Foucault dá para suas análises do poder: uma
produção que prioriza o micro em relação ao macro e considera, como se
discutirá adiante, que a estruturação da sociedade possui uma
determinação ao mesmo tempo de cima para baixo – das grandes
instituições e relações de poder para os níveis mais básicos e simples
das relações sociais – e de baixo para cima, no sentido contrário; o
mesmo movimento que se dá entre centro e periferia. Se é verdade que os
teóricos clássicos da política investiram significativamente nesse
“macro-nível” das relações de poder, Foucault prioriza, distintamente,
o “micro-nível” dessas relações, e essa é uma de suas grandes inovações
no estudo do poder.
Para tanto, ele propõe que se conceba a “teoria como uma caixa de
ferramentas”, o que significa “que se trata de construir não um
sistema, mas um instrumento: uma lógica própria às relações de poder e
às lutas que se engajam em torno delas”, e, ao mesmo tempo “que essa
pesquisa só pode se fazer aos poucos, a partir de uma reflexão
(necessariamente histórica em algumas de suas dimensões) sobre
situações dadas”.[EPS, p. 251] Essa concepção da teoria como caixa de
ferramentas implica, assim, um conjunto de instrumentos que, de acordo
com uma situação dada, pode-se utilizar, tendo por objetivo uma análise
determinada e que serve para algumas situações, mas não necessariamente
para todas. Foucault enfatiza ainda a necessidade de que a pesquisa
sobre as relações de poder utilize-se de uma abordagem histórica, o que
me parece constituir uma rejeição de esquemas puramente sociológicos,
que poderiam ser aplicados em qualquer circunstância, independente dos
fatores tempo e lugar: “se o objetivo for construir uma teoria do
poder, haverá sempre a necessidade de considerá-lo como algo que surgiu
em um determinado ponto e em um determinado momento, de que se deverá
fazer a gênese e depois a dedução”.[MP, p. 248]
Em relação a essa elaboração teórica, recomenda Foucault: “qualquer um
que tente fazer qualquer coisa – elaborar uma análise, por exemplo, ou
formular uma teoria – deve ter uma idéia clara da maneira como quer que
sua análise ou sua teoria sejam utilizadas; deve saber a que fins ele
almeja ver se aplicar a ferramenta que ele fabrica – que ele próprio
fabrica –, e de que maneira ele quer que suas ferramentas se unam
àquelas fabricadas por outros, no mesmo momento. Considero muito
importantes as relações entre a conjuntura presente e o que fazemos no
interior de um quadro teórico. É preciso ter essas relações de modo bem
claro na mente. Não se podem fabricar ferramentas para não importa o
quê; é preciso fabricá-las para um fim preciso.” Portanto, essa
recomendação implica que o teórico tenha em mente a finalidade da
ferramenta que elabora e saiba como essa ferramenta relaciona-se com a
conjuntura que deseja analisar.
Constatando a insuficiência de instrumentos conceituais para uma
análise mais aprofundada do poder, Foucault propõe, para suprir essa
lacuna, a elaboração de uma teoria que ofereça ferramentas capazes de proporcionar a devida compreensão das relações de poder.
“Se o poder na realidade é um feixe aberto, mais ou menos coordenado (e
sem dúvida mal coordenado) de relações”, coloca, “então o único
problema é munir-se de princípios de análise que permitam uma analítica
das relações de poder”.[MP, p. 248]
Questões centrais para a compreensão do poder
Seria possível perguntar: o poder não é um tema central das ciências
humanas em geral e das ciências sociais em particular, que vem sendo
estudado há séculos? De certa maneira sim. No entanto, Foucault
acredita que as formulações teóricas que buscaram constituir
ferramentas para as análises do poder possuem sérias limitações.
Buscando trabalhar sobre esse conjunto teórico para a compreensão mais
adequada e completa do poder, ele aprofunda as análises clássicas sobre
o tema, agregando novos elementos que permitem uma compreensão mais
significativa da questão. Creio, nesse sentido, que a maior contribuição de Foucault seja a elaboração de uma teoria que complemente as análises clássicas do poder, ainda que, em alguns casos, sua teoria negue aspectos centrais dessas teorias clássicas.
As questões centrais, para Foucault, são: 1. O que são o poder e as relações de poder? 2. Onde está o poder e aonde se dão as relações de poder? 3. Como se
constitui o poder e como funcionam as relações de poder? Ainda que o
autor não sistematize dessa forma, creio que essa forma esquemática
permite uma apresentação mais didática, que facilita a compreensão.
As questões teóricas são trazidas por Foucault no bojo de uma reflexão
sobre seus objetos de estudo (medicina, psiquiatria, prisões,
sexualidade, etc.). Ao mesmo tempo em que ele realiza críticas de
abordagens anteriores, formula seus próprios pontos de vista, os quais
se constituem, em grande medida, visando suprir as lacunas deixadas por
teorias anteriormente concebidas. Por isso o caráter muitas vezes
dicotômico da apresentação das idéias que farei; por um lado criticam e
por outro propõem. Utilizarei essas dicotomias para explicitar, quando
da elaboração de um aspecto teórico, quais são as suas posições.
O poder e as relações de poder
O poder como produção
Foucault acredita que muitas análises do poder tentam vinculá-lo a uma
concepção fundamentalmente negativa, repressiva, “de redução dos
procedimentos de poder à lei de interdição”[EPS, p. 246] – dando, por
esse motivo, ao poder, uma conotação freqüentemente jurídica e
repressiva, associando-o muitas vezes ao Estado. Para ele, em geral,
nessas análises, “o problema é sempre apresentado nos mesmos termos: um
poder essencialmente negativo que supõe, de um lado, um soberano, cujo
papel é o de interditar e, do outro, um sujeito que deve, de uma certa
maneira, dizer sim a essa interdição”.[EPS, p. 247] Essa abordagem, do
poder essencialmente como elemento de negação, para Foulcault, possui
três papeis fundamentais: 1.) “Ela permite fazer um esquema do poder
que é homogêneo não importa em que nível nos coloquemos e seja qual for
o domínio (família ou Estado, relação de educação ou de produção.” 2.)
“Ela permite nunca pensar o poder senão em termos negativos: recusa,
delimitação, barreira, censura. O poder é o que diz não. E o
enfrentamento com o poder assim concebido só aparece como
transgressão.” 3.) “Ela permite pensar a operação fundamental do poder
como um ato de fala: enunciação da lei, discurso da interdição. A
manifestação do poder reveste a forma pura do ‘tu não deves’.”[EPS, p.
246]
Por meio dos argumentos apresentados, Foucault vai negar essa abordagem
que conceitua o poder somente pela negação. Para ele, o poder pode até
ser negação, mas é, fundamentalmente, produção, construção: “o
interdito, a recusa, a proibição, longe de serem as formas essenciais
do poder, são apenas seus limites, as formas frustradas ou extremas. As
relações de poder são, antes de tudo, produtivas.”[MP, p. 236]
A abordagem exclusivamente negativa do poder, nesse sentido, seria
inadequada: “a noção de repressão é totalmente inadequada para dar
conta do que existe justamente de produtor no poder. Quando se define
os efeitos do poder pela repressão, tem-se uma concepção puramente
jurídica deste mesmo poder; identifica-se o poder a uma lei que diz
não. O fundamental seria a força da proibição.”[MP, pp. 7-8] Na
realidade, o autor acredita que a noção de poder como negação foi
aceita de maneira generalizada, o que lhe parece um erro crasso; essa
noção negativa do poder é “estreita e esquelética”.[MP, p. 8]
“Se o poder fosse somente repressivo”, questiona, “se não fizesse outra
coisa a não ser dizer não, você acredita que seria obedecido?” Foucault
acredita que não; “o que faz com que o poder se mantenha e que seja
aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não,
mas que de fato permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso.
Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo
social muito mais do que uma instância negativa que tem por função
reprimir.”[Ibid.] “Se o poder só tivesse a função de reprimir, se
agisse apenas por meio da censura, da exclusão do impedimento, do
recalcamento, à maneira de um grande super-ego, se apenas se exercesse
de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque
produz efeitos positivos a nível do desejo – como se começa a conhecer
– e também a nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o
produz.”[MP, p. 148]
Portanto, o primeiro aspecto relevante da teoria de Foucault para se pensar ao poder é rechaçar seu
aspecto essencialmente negativo – definido exclusivamente em termos
jurídicos, repressivos e, frequentemente, de Estado – e assumir que o
poder permeia as relações sociais, produzindo, induzindo, constituindo.
Assim, o poder pode possuir aspectos de negação, mesmo que nunca se
resuma a eles, visto que ele envolve, acima de tudo, a produção.
O poder como relação de força
Para Foucault, em sua época, as abordagens sobre o poder provindas
tanto do campo da direita como da esquerda eram insuficientes: “Não
vejo quem – na direita ou na esquerda – poderia ter colocado este
problema do poder. Pela direita, estava somente colocado em termos de
constituição, de soberania, etc., portanto em termos jurídicos; e, pelo
marxismo, em termos de aparelho do Estado. Ninguém se preocupava com a
forma como ele se exercia concretamente e em detalhe, com sua
especificidade, suas técnicas e suas táticas”. Ainda que,
aparentemente, se tratasse do tema, ele acredita que “a mecânica do
poder nunca era analisada”. Situação que, segundo sustenta, só se
modificaria no fim dos anos 1960: “Só se pôde começar a fazer este
trabalho depois de 1968, isto é, a partir das lutas cotidianas e
realizadas na base com aqueles que tinham que se debater nas malhas
mais finas da rede do poder. Foi aí que apareceu a concretude do poder
e ao mesmo tempo a fecundidade possível destas análises do poder, que
tinham como objetivo dar conta destas coisas que até então tinham
ficado à margem do campo da análise política.”[MP, p. 6]
Para que as análises do poder fossem realizadas a contento, o modelo
que se apóia nas soluções eminentemente jurídicas – que trata a
problemática do poder somente em termos de constituição, lei, proibição
etc. – deveria ser descartado, pois “foi muito utilizado e mostrou
[...] ser inadequado”. Ainda que trabalhando com hipóteses, Foucault
afirma que, por essa insuficiência de modelo, pareceria mais adequado
outro modelo, que ele chama de “guerreiro ou estratégico”, ou seja,
aquele que se fundamenta nas “relações de forças”.
Conceber o poder a partir das relações de forças o leva a trabalhar com
a junção de duas hipóteses: “por um lado, os mecanismos de poder seriam
de tipo repressivo, idéia que chamarei por comodidade de hipótese de
Reich; por outro lado, a base das relações de poder seria o confronto
belicoso de forças, idéia que chamarei, também por comodidade, de
hipótese de Nietzsche”. Duas hipóteses que, segundo acredita, “não são
inconciliáveis” e “parecem se articular”.[MP, p. 176] Essa concepção do
poder, a partir das hipóteses de Reich e Nietzsche, diferencia-se de
uma outra – mais clássica, se poderia dizer, utilizada por filósofos do
século XVIII –, que se fundamenta no “poder como direito originário que
se cede, constitutivo da soberania, tendo o contrato como motriz”.[MP,
p. 177] Concebido dessa maneira, o poder se fundamentaria na idéia de
um contrato e os excessos ou rompimentos desse contrato poderiam levar
esse poder a tornar-se opressivo.
As hipóteses de Reich e Nietzsche – distintamente dessa concepção
contratual de poder – buscariam “analisar o poder político, não mais
segundo o esquema contrato-opressão, mas segundo o esquema
guerra-repressão; neste sentido, a repressão não seria mais o que era a
opressão com respeito ao contrato, isto é, um abuso, mas, ao contrário,
o simples efeito e a simples continuação de uma relação de dominação. A
repressão seria a prática, no interior desta pseudo-paz, de uma relação
perpétua de força.”[Ibid.] Na realidade, Foucault acredita que
Nietzsche trouxe contribuições relevantes para o estudo das relações de
poder, sendo, por isso, “um filósofo do poder, mas que chegou a pensar
o poder sem se fechar no interior de uma teoria política”.[MP, p. 143]
Tateando para buscar responder a primeira questão central sobre o poder
– O que são o poder e as relações de poder? –, Foucault coloca que
“talvez ainda não se saiba o que é o poder”.[MP, p. 75] Suas
investigações, em grande medida, vão buscar compreender as relações de
poder – como colocado, fundamentalmente em seus níveis mais “micro” –
para que se chegue a uma resposta adequada para a difícil questão.
Apesar dessa reticência em apontar inicialmente um conceito bem
definido, Foucault continua as reflexões e traz elementos relevantes
para se pensar a questão. Um primeiro aspecto, negado inicialmente, é
que não se pode conceber o poder simplesmente como um sinônimo de
Estado: “a teoria do Estado, a análise tradicional dos aparelhos de
Estado sem dúvida não esgotam o campo de exercício e de funcionamento
do poder”.[Ibid.] Assim, seria necessário conceber uma definição mais
ampla, que desse conta de um fenômeno que poderia ter relações com o
Estado, mas que não se resumisse a ele. Similarmente, o autor acredita
que não seria possível conceber o poder somente em termos econômicos.
Assim, buscando uma definição do poder dentro desses pressupostos,
Foucault fundamenta-se na hipótese de Nietzsche colocada anteriormente
para questionar: “se o poder é, em si próprio, ativação e desdobramento
de uma relação de força [...], não deveríamos analisá-lo, acima de
tudo, em termos de combate, de confronto e de guerra?”. Trabalhar com
essa hipótese, significaria “que o poder é guerra, guerra prolongada
por outros meios.” A clássica posição de Clausewitz, de que “a guerra é
continuação da política por outros meios”, seria, assim, invertida,
podendo-se afirmar “que a política é a guerra prolongada por outros
meios”[MP, p. 176], inversão que implicaria, para Foucault, três
afirmações.
1) “Que as relações de poder nas sociedades atuais têm essencialmente
por base uma relação de força estabelecida, em um momento
historicamente determinável, na guerra e pela guerra. E se é verdade
que o poder político acaba a guerra, tenta impor a paz na sociedade
civil, não é para suspender os efeitos da guerra ou neutralizar os
desequilíbrios que se manifestaram na batalha final, mas para
reinscrever perpetuamente estas relações de força, através de uma
espécie de guerra silenciosa, nas instituições e nas desigualdades
econômicas, na linguagem e até no corpo dos indivíduos. A política é a
sanção e a reprodução do desequilíbrio das forças manifestadas na
guerra.”
2) “Que, no interior desta ‘paz civil’, as lutas políticas, os
confrontos a respeito do poder, com o poder e pelo poder, as
modificações das relações de força em um sistema político, tudo isto
deve ser interpretado apenas como continuações da guerra, como
episódios, fragmentações, deslocamentos da própria guerra. Sempre se
escreve a história da guerra, mesmo quando se escreve a história da paz
e de suas instituições.”
3) “Que a decisão final só pode vir da guerra, de uma prova de força em
que as armas deverão ser os juizes. O final da política seria a última
batalha, isto é, só a última batalha suspenderia finalmente o exercício
do poder como guerra prolongada.” [Ibid.]
Essas três afirmações permitem certa análise. A utilização da lógica da
guerra e da paz para a explicação do poder fundamenta-se no fato de que
poder implica força, já que, conforme coloca Foucault, relações de poder implicam relações de forças. Forças que estariam em disputa, em luta permanente, em correlação e num jogo contínuo e dinâmico chamado de guerra, dentro do qual distintas ferramentas e tecnologias poderiam ser utilizadas para a ampliação das forças. A guerra, nesse sentido, não deve ser entendida somente como conflito armado ou militar, mas como disputa e luta permanentes entre as diversas forças em jogo, que podem ser mais ou menos evidentes e violentas, mas que sempre existem e possuem um custo para aqueles que detêm o poder.
É o nível de estabilidade das forças em jogo, conforme elas se
assentam, que determina o que se chama mais comumente de situação de
“guerra” ou de “paz”. Para Foucault, no entanto, a paz não é mais do
que uma situação de guerra estabilizada, em que determinadas forças se
impõem, ainda que isso aconteça sem o fim das outras forças de menor
eficácia. Por isso a afirmação de que, mesmo na paz há guerra, já que,
ainda que uma força tenha se imposto na relação, as outras, ou mesmo
novas forças, continuarão a disputa e a luta, mais ou menos
evidentemente.
O conjunto ou o universo de regras que deriva de uma situação de
conflito, e portanto da “guerra”, e que por vezes institui a paz,
satisfazem, na realidade, a violência intrínseca ao jogo de poder: esse
“universo de regras [...] não é destinado a adoçar, mas ao contrário a
satisfazer a violência. Seria um erro acreditar, segundo o esquema
tradicional, que a guerra geral, se esgotando em suas próprias
contradições, acaba por renunciar à violência e aceita sua própria
supressão nas leis da paz civil. A regra é o prazer calculado da
obstinação, é o sangue prometido. Ela permite reativar sem cessar o
jogo da dominação; ela põe em cena uma violência meticulosamente
repetida. O desejo da paz, a doçura do compromisso, a aceitação tácita
da lei, longe de serem a grande conversão moral, ou o útil calculado
que deram nascimento à regra, são apenas seu resultado e, propriamente
falando, sua perversão: ‘Falta, consciência, dever têm sua emergência
no direito de obrigação; e em seus começos, como tudo o que é grande
sobre a Terra, foi banhado de sangue’.”[MP, p. 25] Portanto, para
Foucault, a paz é a instituição, ou a própria institucionalização da
violência da guerra.
É nesse sentido que um conjunto de decisões só pode, realmente, vir da
guerra, já que as decisões surgem a partir do estabelecimento de
relações de poder, as quais envolvem todas as forças em jogo. Foucault
sustenta que uma relação de poder tem por base uma relação de força estabelecida, ou seja, quando,
em uma determinada correlação de forças, alguma delas se impõe em
relação às outras, há uma relação de poder, que está localizada no
tempo e no espaço. Por isso Foucault caracteriza a política como a intervenção/participação em uma determinada correlação de forças, sempre desequilibrada, que pode realizar-se em sentido favorável, de impulsionar determinada força, ou no sentido oposto, de contê-la.
A história, assim, só poderia ser uma história do poder, forjada nas
relações de dominação, responsável por estabelecer, no corpo social,
“dominadores e dominados. Homens dominam outros homens e é assim que
nasce a diferença dos valores; classes dominam classes e é assim que
nasce a idéia de liberdade; homens se apoderam de coisas das quais eles
têm necessidade para viver, eles lhes impõem uma duração que elas não
têm, ou eles as assimilam pela força − e é o nascimento da lógica.”[MP,
pp. 24-25] Um acontecimento histórico, nesse sentido, é “uma relação de
forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e
voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se enfraquece, se
distende, se envenena e uma outra que faz sua entrada, mascarada.”[MP,
p. 28] A história, a realidade, segundo Foucault, deve ser pensada em
termos das relações de poder e, portanto, pode-se inferir que, para
ele, o poder o “motor da história”.
Falar que o final da política seria a última batalha, e que só essa
batalha seria capaz de acabar com a situação de guerra e com o próprio
poder, parece uma sutileza de Foucault para dizer que o final da política, e do próprio poder, só existiria com o fim da história.
Há, no sentido colocado, uma preferência de Foucault em não falar em
poder, mas em relações de poder, já que o poder em si, para ele, não
existiria como noção apartada da idéia de disputa e luta de forças que
se impõem umas às outras. Por isso sua afirmação de que “as relações de
poder são uma relação desigual e relativamente estabilizada de
forças”[MP, p. 250] e que “lutamos todos contra todos”[MP, p. 257]. A
situação de guerra permanente colocaria todos os indivíduos, e suas
respectivas forças, em disputa e luta permanente, e por isso ele
afirmará, como será discutido mais à frente, que o poder se dá em todas
as esferas e níveis, quando há imposição de força em uma determinada
relação.
No entanto, há um porém: “a pura e simples afirmação de uma ‘luta’ não
pode servir de explicação primeira e última para a análise das relações
de poder. Este tema da luta só se torna operatório se for estabelecido
concretamente, e em relação a cada caso, quem está em luta, a respeito
de que, como se desenrola a luta, em que lugar, com quais instrumentos
e segundo que racionalidade. Em outras palavras, se o objetivo for
levar a sério a afirmação de que a luta está no centro das relações de
poder, é preciso perceber que a brava e velha ‘lógica’ da contradição
não é de forma alguma suficiente para elucidar os processos reais.”[MP,
p. 226] Uma condição que, segundo coloca Foucault, não foi cumprida
pela concepção de luta de classes marxista, já que aqueles que a
formularam “se preocuparam principalmente em saber o que é a classe,
onde ela se situa, quem ela engloba e jamais o que concretamente é a
luta”[MP, p. 242]; ou seja, teriam dado mais atenção ao conceito de
classe do que ao conceito de luta. Analisar o poder, e portanto as
lutas, implica, portanto, identificar atores que emergem, que entram em
cena, um momento em que as forças “passam dos bastidores para o
teatro”, designando “um lugar de afrontamento”.[MP, p. 24]
A relação do poder com a guerra traz junto outra implicação de
relevância, que é a estratégia, termo ao qual Foucault refere-se com
freqüência: “quando falo de estratégia”, coloca, “levo o termo a
sério”; “para que uma determinada relação de forças possa não somente
se manter, mas se acentuar, se estabilizar e ganhar terreno, é
necessário que haja uma manobra” [MP, p. 255]. Assim, a estratégia
torna-se conceito central ao se tratar do poder, já que a concepção de
relações de forças implicaria sempre uma leitura da realidade, um
objetivo estratégico e conjuntos táticos capazes de conduzir à
estratégia e aos objetivos almejados. Analisar o poder, seria, em
outros termos, realizar uma “genealogia das relações de força, de
desenvolvimentos de estratégias e táticas”.[MP, p. 5]
Finalmente, Foucault coloca: “o poder é um feixe de relações mais ou
menos organizado, mais ou menos piramidalizado, mais ou menos
coordenado”[MP, p. 248]; é uma “coisa tão enigmática, ao mesmo tempo
visível e invisível, presente e oculta, investida em toda parte”.[MP,
p. 75] “Nada é mais material, nada é mais físico, mais corporal que o
exercício do poder”.[MP, p. 147]
É um risco tentar elaborar uma resposta de Foucault para a primeira
questão formulada, já que a análise aqui realizada considera diferentes
artigos, escritos em épocas diferentes, e desconsidera o contexto
histórico dentro do qual estão inseridos. Encontra as limitações
colocadas no início do artigo. Como Foucault sempre buscou elaborar
suas reflexões teóricas do poder com o objetivo de refletir sobre
situações concretas e reais – seus objetos de investigação –, retirar
os aspectos teóricos de suas reflexões, buscando elaborar uma “teoria
do poder”, implica arriscar-se seriamente, já que essa nunca foi a
intenção do autor. No entanto, a título de exercício teórico, buscarei,
sabendo desse risco, formular, a partir dos argumentos colocados, uma
possível resposta de Foucault para a questão: O que são o poder e as
relações de poder?
O poder é uma relação que se estabelece nas lutas e disputas (na
guerra, portanto) entre diversas forças, quando uma força se impõe às
outras. Assim, poder e relação de poder podem funcionar como sinônimos.
As forças em jogo contínuo, dinâmico e permanente, constituem a base
das relações em qualquer sociedade e as lutas e disputas podem estar
mais ou menos evidentes, serem mais ou menos violentas, mas sempre
existem. As relações de poder são o conjunto dos poderes que se
estabelecem entre as diversas forças em jogo. Relações que só existem
no espaço e no tempo e que possuem diferentes características em termos
de organização, visibilidade, nível de incidência e espaços em que se
dão.
O lócus do poder e das relações de poder
As três esferas e o poder
A título analítico, trabalharei com a divisão da estrutura sistêmica da
sociedade em três esferas fundamentais: econômica,
política/jurídica/militar e cultural/ideológica – estrutura com a qual,
aparentemente, Foucault não costuma trabalhar. Será com base nessas
esferas que realizarei a analise de onde Foucault acredita estar o
poder, ou seja, como se poderia encontrar uma resposta para a segunda
questão central sobre o poder: Aonde está o poder e aonde se dão as
relações de poder? – estabelecendo, dessa maneira, uma identificação do
locus do poder.
A esfera política/jurídica/militar
Tratando de estudos prévios aos seus, Foucault afirma: “A teoria do
Estado, a análise tradicional dos aparelhos de Estado, sem dúvida não
esgotam o campo de exercício e de funcionamento do poder”.[MP, p. 75]
Isso porque “o poder, em seu exercício vai muito mais longe, passa por
canais muito mais sutis, é muito mais ambíguo [que o aparelho de
Estado], porque cada um de nós, é, no fundo, titular de um certo poder
e, por isso, veicula o poder”.[MP, p. 160] Por isso, Foucault afirma
que a busca pelo locus do
poder não pode resumir-se ao campo do Estado. Obviamente, com isso, não
está negando que no Estado não haja poder, mas que o poder também se dá
em esferas e níveis que estão para além do Estado.
Uma visão que não implica, “de forma alguma, a intenção de diminuir a
importância e a eficácia do poder do Estado”. Mas constitui uma
preocupação, já que “de tanto se insistir em seu papel, e em seu papel
exclusivo, corre-se o risco de não dar conta de todos os mecanismos e
efeitos do poder que não passam diretamente pelo aparelho de Estado,
que muitas vezes o sustentam, o reproduzem, elevam sua eficácia ao
máximo”.[MP, p. 161] Assim, nota-se a preocupação de um certo
reducionismo que, ao priorizar o Estado como locus do poder deixaria de lado uma série de outros loci que
possuem, para ele, relevância. “A questão do poder fica empobrecida
quando é colocada unicamente em termos de legislação, de Constituição,
ou somente em termos de Estado ou de aparelho de Estado. O poder é mais
complicado, muito mais denso e difuso que um conjunto de leis ou um
aparelho de Estado.”[MP, p. 221]
Estudar o poder para Foucault é, portanto, considerá-lo mais amplamente
que o Estado, já que “as relações de poder [...] passam por muitas
outras coisas”. “As relações de poder existem entre um homem e uma
mulher, entre aquele que sabe e aquele que não sabe, entre os pais e as
crianças, na família. Na sociedade, há milhares e milhares de relações
de poder e, por conseguinte, relações de forças de pequenos
enfrentamentos, microlutas, de algum modo.”[EPS, p. 231] E, se por um
lado pode haver influências do Estado e também das dominações de classe
nessas outras relações de poder, é possível afirmar que o contrário
também é verdadeiro: “Se for verdade que essas pequenas relações de
poder são com freqüência comandadas, induzidas do alto pelos grandes
poderes de Estado ou pelas grandes dominações de classe, é preciso
ainda dizer que, em sentido inverso, uma dominação de classe ou uma
estrutura de Estado só podem funcionar se há, na base, essas pequenas
relações de poder. O que seria o poder de Estado, aquele que impõe, por
exemplo, o serviço militar, se não houvesse, em torno de cada
indivíduo, todo um feixe de relações de poder que o liga a seus pais, a
seu patrão, a seu professor – àquele que sabe, àquele que lhe enfiou na
cabeça tal ou qual idéia? A estrutura de Estado, no que ela tem de
geral, de abstrato, mesmo de violento, não chegaria a manter, assim,
contínua e cautelosamente, todos os indivíduos, se ela não se
enraizasse, não utilizasse, como uma espécie de grande estratégia,
todas as pequenas táticas locais e individuais que encerram cada um
entre nós.”[EPS, pp. 231-232]
Conceber uma teoria libertária do poder, que tenha como objetivo
fornecer ferramentas para a compreensão da sociedade e sobre a qual
possam ser estabelecidas estratégias de transformação envolve, partido
da análise de Foucault, ter em mente que “o poder não está localizado
no aparelho de Estado e que nada mudará na sociedade se os mecanismos
de poder que funcionam fora, abaixo, ao lado dos aparelhos de Estado, a
um nível muito mais elementar, cotidiano, não forem modificados”.[MP,
pp. 149-150] E nesse sentido, as análises e estratégias de
transformação têm a necessidade de extrapolar a esfera do Estado.
Portanto, como dito, há para Foucault poder no Estado, mas uma análise do locus do poder não pode se resumir ao Estado e, menos ainda, ao governo.
Ainda tratando da esfera política, e de certa maneira ligado à questão
do Estado, pode-se localizar o poder também no judiciário, nas prisões,
nos hospitais psiquiátricos, na polícia, no exército, nas leis etc.
Para as pesquisas, Foucault recomenda: “em vez de orientar a pesquisa
sobre o poder no sentido do edifício jurídico da soberania, dos
aparelhos de Estado e das ideologias que o acompanham, deve-se
orientá-la para a dominação, os operadores materiais, as formas de
sujeição, os usos e as conexões da sujeição pelos sistemas locais e os
dispositivos estratégicos. E preciso estudar o poder colocando-se fora
do modelo do Leviatã, fora do campo delimitado pela soberania jurídica
e pela instituição estatal. E preciso estudá-lo a partir das técnicas e
táticas de dominação. Esta é, grosso modo, a linha metodológica a ser
seguida e que procurei seguir nas várias pesquisas que fizemos nos
últimos anos.”[MP, p. 186]
A esfera cultural/ideológica
O poder, para Foucault, como se viu, não se resume à esfera política.
Diversas de suas discussões se dão em torno da esfera
cultural/ideológica. É relevante aqui fazer um esclarecimento de que
Foucault geralmente nega o conceito de ideologia, por identificá-la com
a definição que se aproxima do que foi chamado de “significado forte”
de ideologia: “A noção de ideologia me parece dificilmente utilizável
por três razões. A primeira é que, queira-se ou não, ela está sempre em
oposição virtual a alguma coisa que seria a verdade. Ora, creio que o
problema não é de se fazer a partilha entre o que num discurso releva
da cientificidade e da verdade e o que relevaria de outra coisa; mas de
ver historicamente como se produzem efeitos de verdade no interior de
discursos que não são em si nem verdadeiros nem falsos. Segundo
inconveniente: refere-se necessariamente a alguma coisa como o sujeito.
Enfim, a ideologia está em posição secundária com relação a alguma
coisa que deve funcionar para ela como infra-estrutura ou determinação
econômica, material, etc. Por estas três razões, creio que é uma noção
que não deve ser utilizada sem precauções.”[MP, p. 7] Quando trabalho
com a ideologia como parte constituinte de uma esfera, utilizo essa
precaução e trabalho com uma compreensão mais próxima do que foi
chamado de “significado fraco” de ideologia.[4]
Ao afirmar que a concepção de Foucault envolve a esfera cultural/ideológica estou me referindo ao campo
das idéias, dos discursos, dos valores, da moral, da ética, das
motivações, dos desejos, das aspirações, dos costumes, das crenças, do
saber etc. Aspectos centrais na teoria foucaultiana do poder. Para ele, essa esfera, que envolve os campos mencionados, está cheia de relações de poder e suas investigações acerca da verdade e do saber têm muito a contribuir nesse sentido.
Para o autor, há cinco características históricas relevantes sobre a
verdade: “‘a verdade’ é centrada na forma do discurso científico e nas
instituições que o produzem; está submetida a uma constante incitação
econômica e política (necessidade de verdade tanto para a produção
econômica, quanto para o poder político); é objeto, de várias formas,
de uma imensa difusão e de um imenso consumo (circula nos aparelhos de
educação ou de informação, cuja extensão no corpo social é
relativamente grande, não obstante algumas limitações rigorosas); é
produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante,
de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidade,
exército, escritura, meios de comunicação); enfim, é objeto de debate
político e de confronto social (as lutas ‘ideológicas’).”[MP, p. 13]
Deixando de lado as relações entre essa esfera e as esferas política e
econômica – questão que será abordada mais adiante –, pode-se afirmar
que, para Foucault, a esfera cultural/ideológica também é locus
do poder; poderes que se ligam diretamente à determinadas concepções de
verdade, as quais, muitas vezes, fundamentam-se no discurso científico,
utilizando-se da ciência para legitimar posições que podem ou não ter
conteúdo, de fato, científico. O poder, nesse sentido, estaria nas
escolas, nas universidades, na imprensa e na indústria cultural,
forjando-se nas relações sociais que se estabelecem nesses âmbitos.
Foucault sugere compreender verdade como “um conjunto de procedimentos
regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o
funcionamento dos enunciados”, sendo que ela estaria “circularmente
ligada a sistemas de poder, que a produzem e a apóiam, e a efeitos de
poder que ela induz e que a reproduzem. ‘Regime da verdade’”. Um regime
que, na realidade, “não é simplesmente ideológico ou superestrutural;
foi uma condição de formação e desenvolvimento do capitalismo” – e,
para ser transformado, precisaria ser desvinculado das hegemonias
sociais, econômicas e culturais. E também coloca: “a questão política
não é o erro, a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia; é a
própria verdade”.[MP, p. 14]
A verdade, portanto, instituiria um determinado campo
regulatório/normativo responsável pela circulação do poder. Um campo
que se alimentaria de outras relações de poder e ao mesmo tempo as
alimentaria, não consistindo em um mero reflexo da infra-estrutura da
sociedade e tendo relevância, também, na formulação e no
desenvolvimento de outras relações de poder. A noção de verdadeiro e
falso seria capaz de se estabelecer em discursos com influências
morais, e forjar noções de bem e de mal, de certo e de errado, muitas
das quais serviriam de base para relações de poder. A verdade, no
sentido daquilo “que se dá”, é um “acontecimento”; “deste acontecimento
que assim se produz impressionando aquele que o buscava, a relação não
é do objeto ao sujeito de conhecimento. E uma relação ambígua,
reversível, que luta belicosamente por controle, dominação e vitória:
uma relação de poder.”[MP, pp. 114-115] Em suma, “essas produções de
verdades não podem ser dissociadas do poder e dos mecanismos de poder,
ao mesmo tempo porque esses mecanismos de poder tornam possíveis,
induzem essas produções de verdades, e porque essas produções de
verdade têm, elas próprias, efeitos de poder que nos unem, nos
atam”.[EPS, p. 229]
Foucault acredita, similarmente, que o saber possui uma relação
estreita com o poder, ou seja, haveria “uma perpétua articulação do
poder com o saber e do saber com o poder”. Pensa que “exercer o poder
cria objetos de saber, os faz emergir, acumula informações e as
utiliza. Não se pode compreender nada sobre o saber econômico se não se
sabe como se exercia, cotidianamente, o poder, e o poder econômico. O
exercício do poder cria perpetuamente saber e, inversamente, o saber
acarreta efeitos de poder.[MP, pp. 141-142] O saber, nesse sentido,
serviria como causa e conseqüência de acontecimentos diversos que
seriam parte de inúmeras relações de poder. Foucault trabalha com a
hipótese de que “as grandes máquinas de poder” podem ter “sido
acompanhadas de produções ideológicas. Houve, provavelmente, por
exemplo, uma ideologia da educação; uma ideologia do poder monárquico,
uma ideologia da democracia parlamentar, etc.; mas não creio que aquilo
que se forma na base sejam ideologias: é muito menos e muito mais do
que isso. São instrumentos reais de formação e de acumulação do saber:
métodos de observação, técnicas de registro, procedimentos de inquérito
e de pesquisa, aparelhos de verificação. Tudo isto significa que o
poder, para exercer-se nestes mecanismos sutis, é obrigado a formar,
organizar e pôr em circulação um saber, ou melhor, aparelhos de saber
que não são construções ideológicas.”[MP, p. 186]
Essa esfera que chamei de cultural/ideológica contaria ainda com
elementos relevantes como o papel dos intelectuais e das religiões, e
as noções de desejo e interesse. Sobre esses últimos, afirma Foucault:
“as relações entre desejo, poder e interesse são mais complexas do que
geralmente se acredita e não são necessariamente os que exercem o poder
que têm interesse em exercê-lo, os que têm interesse em exercê-lo não o
exercem e o desejo do poder estabelece uma relação ainda singular entre
o poder e o interesse. [...] Esta relação entre o desejo, o poder e o
interesse é ainda pouco conhecida.” Afirmações que, sem cair em
reducionismos generalizantes, dão uma idéia dos desafios que ainda se
colocam àqueles que se dispõem a estudar o poder.
A esfera econômica
O tema da economia não é significativamente estudado por Foucault,
mesmo porque, sua principal intenção é entender o poder em outras
esferas e as determinadas influências que o poder dessas esferas
poderiam exercer na esfera econômica, responsável pelas relações de
produção, distribuição e consumo. Foucault identifica certa evolução
nesse campo, aparentemente no marxismo, quando coloca, por exemplo, que
a exploração só foi realmente compreendida durante o século XIX.[MP, p.
75] No entanto, esse salto qualitativo na compreensão econômica da
sociedade teria tido como conseqüência o fato de que, desde aqueles
tempos, “a crítica da sociedade foi feita, essencialmente, a partir do
caráter efetivamente determinante da economia. Sã redução do
‘político’, certamente, mas também tendência a negligenciar as relações
de poder elementares que podem ser constituintes das relações
econômicas.”[MP, p. 237]. Nesse sentido, se por um lado os estudos que
vêm desde o século XIX permitiram uma compreensão mais aprofundada da
economia, identificando que nela também havia poder e reconhecendo sua
relevância, por outro, eles terminaram apontando para um certo reducionismo,
quando a economia passou a ser vista como locus exclusivo do poder ou
como uma infra-estrutura que necessariamente determinaria tudo aquilo
que se chamou de superestrutura.
Portanto, considerar o autor dentro de seu respectivo contexto implica,
nesse caso, compreender a tentativa de Foucault de extrapolar a esfera
econômica para as análises do poder. E por esse motivo, quando trata de
economia, sua abordagem se dá mais no sentido de criticar esse
“economicismo” do que de tratar do poder na esfera econômica. Ele se
volta “contra a idéia de um poder que seria uma superestrutura”,
obedecendo necessariamente a um determinismo da esfera econômica, “mas
não contra a idéia de que este poder é, de alguma forma, consubstancial
ao desenvolvimento das forças produtivas; ele faz parte deste
desenvolvimento” e “se transforma continuamente junto com elas”.[MP, p.
222] Foucault
acredita que não se pode reduzir o poder a uma superestrutura,
determinada pela economia, mas também não se pode negar que na esfera
econômica exista poder.
Isso significa que, para Foucault, existe poder na esfera
econômica – constituída pelas relações econômicas que envolvem o campo
do trabalho, as classes, etc. – que é, também, locus privilegiado do
poder.
Sua intenção, como mencionado, não será discutir as questões
macro-econômicas que, segundo ele, vêm sendo suficientemente estudadas
desde o século XIX. Foucault se dedicará às funções no campo do
trabalho que extrapolam as relações de produção e privilegiará, como de
praxe, as micro-relações. Referindo-se, por exemplo, ao seu interesse
no campo do trabalho, afirma: “A função produtiva [do trabalho] é
sensivelmente igual a zero nas categorias de que me ocupo, enquanto que
as funções simbólica e disciplinar são muito importantes”.[MP, p. 224]
Foucault busca pesquisar as micro-relações de poder, nos níveis mais
fundamentais da sociedade, relações geralmente menos evidentes,
apreendendo-as “até as infra-estruturas econômicas”, que constituem
macro-relações mais evidentes. E sua teoria deve ser compreendida
dentro desse contexto.
Pode-se, também, na discussão do poder na esfera econômica, trazer
algumas contribuições de Foucault para o tema das classes sociais e da
luta de classes. O autor não
nega a existência de classes sociais e de uma relação de poder e
dominação entre elas; uma relação que se realizaria a partir de um
conjunto determinado de estratégias e táticas com resultados tanto na
classe dominante como na classe dominada: “Uma classe dominante
não é uma abstração, mas também não é um dado prévio. Que uma classe se
torne dominante, que ela assegure sua dominação e que esta dominação se
reproduza, estes são efeitos de um certo número de táticas eficazes,
sistemáticas, que funcionam no interior de grandes estratégias que
asseguram esta dominação. Mas entre a estratégia que fixa, reproduz,
multiplica, acentua as relações de força e a classe dominante, existe
uma relação recíproca de produção. Pode-se, portanto, dizer que a
estratégia de moralização da classe operária é a da burguesia. Pode-se
mesmo dizer que é a estratégia que permite à classe burguesa ser a
classe burguesa e exercer sua dominação.”[MP, pp. 252-253] A partir da
noção de dominação de classe, parece evidente que o saber possui uma
relação estrita com ela, já que a família, a universidade, o sistema
escolar, responsáveis pela distribuição do poder, são feitos “para
manter no poder uma certa classe social e excluir dos instrumentos do
poder qualquer outra classe social”.[EPS, p. 114]
A contradição entre as classes sociais – que poderia ser chamada de
luta de classes, já que “luta é contradição” – deve ser objeto de
investigação, já que “o problema é saber se a lógica da contradição
pode servir de princípio de inteligibilidade e de regra de ação na luta
política”.[EPS, p. 250] Algo que implica, para Foucault, abandonar a dialética de base hegeliana,
e pensar as relações de poder em termos luta, sem necessariamente uma
síntese como resultado: “Não sei bem como solucionar este problema. Mas
quando se considera que o poder deve ser analisado em termos de
relações de poder, é possível apreender, muito mais que em outras
elaborações teóricas, a relação que existe entre o poder e a luta, em
particular a luta de classes.”[MP, p. 256] E é nesse sentido que ele
questiona a prioridade que, no marxismo, se deu à discussão da classe
em detrimento da questão da luta.
É, no entanto, necessário enfatizar, que, se a luta de classes explica
parte das relações de poder, não se pode generalizar: “não acho que
seja fecundo, que seja operante dizer que a psiquiatria é a psiquiatria
de classe, a medicina, a medicina de classe, os médicos e psiquiatras,
os representantes dos interesses de classe. Não se chega a lugar nenhum
quando se faz isso, mas é preciso, contudo, reinserir a complexidade
desses fenômenos no interior de processos históricos que são econômicos
etc.”[EPS, p. 228] Portanto, para Foucaut, não se pode querer explicar todas as relações de poder com base nas análises de classe.
Assim, “a luta de classes pode, portanto, não ser a ‘ratio do exercício
do poder’ e ser, todavia, ‘garantia de inteligibilidade’ de algumas
grandes estratégias.”[EPS, p. 249]
O poder em todo o corpo social
Como se viu, para Foucault há poder nas três grandes esferas anteriormente especificadas; relações que atravessam, portanto, todo o corpo social:
“em uma sociedade como a nossa, mas no fundo em qualquer sociedade,
existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam e
constituem o corpo social”[MP, p. 179]; “o poder não opera em um único
lugar, mas em lugares múltiplos”.[EPS, p. 262]
Nesse sentido, há poder em todas as esferas estruturadas, tanto em
nível macro, como em nível micro. Não se trata, para Foucault, em seus
estudos, de compreender o poder que se encontra nos centros, mas “ao
contrário, de captar o poder em suas extremidades, em suas últimas
ramificações, lá onde ele se torna capilar”.[MP, p. 182] E corrobora:
“quando penso na mecânica do poder, penso em sua forma capilar de
existir, no ponto em que o poder encontra o nível dos indivíduos,
atinge seus corpos, vem se inserir em seus gestos, suas atitudes, seus
discursos, sua aprendizagem, sua vida cotidiana.”[MP, p. 131] Seu
interesse está “na vida cotidiana, nas relações entre os sexos, nas
famílias, entre os doentes mentais e as pessoas sensatas, entre os
doentes e os médicos”[EPS, p. 233]; e mais: “a vida sexual, [...] a
exclusão dos homossexuais”. Para ele, “todas essas relações são
relações políticas”.[EPS, p. 262]
Ainda que seu foco seja nos níveis mais baixos, básicos, capilares
e periféricos do poder, isso não significa negar a presença do poder em
seus aspectos altos, mais evidentes e centrais. Para Foucault, as
micro-relações de poder são relevantes, pois, além de serem
influenciadas pelas macro-relações, têm a capacidade de influenciá-las
e estruturá-las. Há, assim, relações de poder que se estruturam de
forma piramidal, com um pico, um ápice, e uma base. “Existe, portanto,
um ápice”, ainda que esse ápice não seja necessariamente “a ‘fonte’ ou
o ‘princípio’ de onde todo o poder derivaria como de um foco luminoso.
[...] O ápice e os elementos inferiores estão em uma relação de apoio e
de condicionamento recíprocos; eles se sustentam”[MP, p. 221] – relação
que será investigada a seguir.
O poder estaria “sempre ali”, nunca permitindo estarmos “fora”, já “que
não há ‘margens’ para a cambalhota daqueles que estão em ruptura”,
ainda que essa afirmação não implique “que se deva admitir uma forma
incontornável de dominação ou um privilégio absoluto da lei. Que nunca
se possa estar ‘fora do poder’ não quer dizer que se está inteiramente
capturado na armadilha.”[EPS, p. 248]
Ainda que como hipóteses a serem exploradas, Foucault sugere: “– que o
poder é coextensivo ao corpo social; não há, entre as malhas de sua
rede, praias de liberdades elementares; – que as relações de poder são
intrincadas em outros tipos de relação (de produção, de aliança, de
família, de sexualidade) em que desempenham um papel ao mesmo tempo
condicionante e condicionado; – que elas não obedecem à forma única da
interdição e do castigo, mas que são formas múltiplas; – que seu
entrecruzamento delineia fatos gerais de dominação, que esta dominação
se organiza em estratégia mais ou menos coerente e unitária; que os
procedimentos dispersados, heteromorfos e locais do poder são
reajustados, reforçados, transformados por essas estratégias globais, e
tudo isso com numerosos fenômenos de inércia, de intervalos, de
resistências; que não se deve, portanto, pensar um fato primeiro e
maciço de dominação (uma estrutura binária com, de um lado, os
´dominantes` e, de outro, os ´dominados`), mas, antes, uma produção
multiforme de relações de dominação, que são parcialmente integráveis a
estratégias de conjunto.”[Ibid.] Posição que se evidencia em sua
própria definição de dominação: “por dominação eu não entendo o fato de
uma dominação global de um sobre os outros, ou de um grupo sobre o
outro, mas as múltiplas formas de dominação que podem se exercer na
sociedade”.[MP, p. 181]
Fechando, e novamente, a título de exercício teórico, e consciente dos
riscos que isso implica, buscarei uma possível resposta de Foucault
para a questão: Onde está o poder e aonde se dão as relações de poder?
O poder está em todo o corpo social, nas distintas esferas da
sociedade (macro e micro, do centro e da periferia), as quais possuem,
em seu seio, múltiplas relações de poder que atravessam, caracterizam e
constituem esse corpo social. O poder, portanto, não é uma
exclusividade do Estado e existe para além da esfera política, nas
relações sociais forjadas cultural e ideologicamente, assim como no
campo da economia. No entanto, aceitar que há poder na esfera econômica
não significa negar que haja poder nas outras esferas e nem que a
esfera econômica determine ou se sobreponha, obrigatoriamente, às
outras. A esfera econômica e as próprias categorias mais ligadas à
economia, como as classes sociais e a luta de classes, constituem parte
do locus do poder e explicam o poder apenas parcialmente.
A dinâmica do poder e das relações de poder
Para estudar a dinâmica do poder e das relações de poder, Foucault
rechaça algumas posições clássicas que foram – e, em alguma medida,
ainda são – defendidas por teóricos e correntes que se debruçaram sobre
o tema. Propõe, contrapondo as posições criticadas, concepções acerca
do modus operandi do poder.
Progresso e evolução da sociedade
Dentre as questões teórico-filosóficas que nortearam muito do
pensamento social clássico – que inclui os teóricos do socialismo –
está a noção de progresso e/ou evolução da sociedade. Haveria um
sentido progressivo e evolutivo na história da humanidade?
Durante o século XIX, o pensamento socialista, por exemplo, esteve
permeado por uma resposta afirmativa em relação a essa questão. Marx
acreditava que o capitalismo era um progresso em relação ao feudalismo
e uma ante-sala do socialismo, que necessariamente chegaria por um
desenvolvimento das forças produtivas; Proudhon, em sua dialética
serial, nunca abandonou a noção de que a contradição entre os pares
antinômicos, ainda que constituísse certa “equilibração”, sem síntese e
fim dos conflitos, implicaria um progresso gradual da sociedade;
Bakunin acreditava que a humanidade, atual fase do desenvolvimento
humano, provinha da animalidade e era também a ante-sala da liberdade,
terceira e última fase do desenvolvimento natural e inevitável da
humanidade; Kropotkin acreditava que a revolução era inevitável, por
razão da desorganização natural da sociedade contemporânea e por uma
certa tendência natural do homem à cooperação – fatos que ele afirmava
ter verificado cientificamente. São inúmeros os exemplos que se poderia
dar.
Foucault discorda dessas posições. Para ele, a sociedade não
tem por trás de suas relações de poder um mecanismo que leva,
naturalmente, ao progresso ou à evolução em qualquer sentido, seja
ele o socialismo, a liberdade, o fim dos conflitos ou qualquer outro
fim pré-determinado. Mesmo a idéia de fim dos conflitos, de paz, como
se viu, para o autor, tem mais um sentido de instituição e de
institucionalização da guerra, do que de objetivo final da sociedade:
“A humanidade não progride lentamente, de combate em combate, até uma
reciprocidade universal, em que as regras substituiriam para sempre a
guerra; ela instala cada uma de suas violências em um sistema de
regras, e prossegue assim de dominação em dominação.”[MP, p. 25] Os
próprios conflitos de forças, como também já se viu, nunca
deixariam de existir. A história, nesse sentido, “não se apóia em
nenhuma constância”[MP, p. 27] e “o verdadeiro sentido histórico
reconhece que nós vivemos sem referências ou sem coordenadas
originárias”.[MP, p. 29] Assim, pode-se dizer que Foucault
acredita que não há uma noção de progresso ou de evolução que
impulsione a história; não há também uma constância determinada e nem
referências ou coordenadas originárias da sociedade, que permitiriam
saber em que sentido ela se desenvolve. Enfatiza: “apenas a metafísica poderia interpretar o devir da humanidade.”[MP, p. 26]
O progresso e a evolução não explicam, portanto, o desenvolvimento da
sociedade e os caminhos da história; é a luta entre as diversas forças
que o fazem: “As forças que se encontram em jogo na história não
obedecem nem a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da
luta.”[MP, p. 28] É a luta entre as distintas forças que impulsiona a
sociedade para um ou outro sentido.
Assim, dependendo da concepção ética por trás da formulação elaborada,
é possível dizer que a humanidade pode progredir, mas também pode
regredir. Afinal, o que é progresso e o que é regresso? A resposta está
certamente ligada à idéia do que é mais avançado, do que é melhor, do
que se aproxima mais daquilo que se concebe como ideal. E nesse
sentido, para Foucault, a
sociedade pode caminhar para um lado ou para outro, dependendo das
relações de poder que se forjarem nos conflitos da sociedade.
Por esse motivo, ele afirma: “não digo que a humanidade não progrida.
Digo que considero um mau método colocar o problema ‘por que
progredimos?’ O problema é ‘como isto se passa?’ E o que se passa agora
não é forçosamente melhor, ou mais elaborado, ou melhor elucidado do
que o que se passou antes.”[MP, p. 140] Para o autor, é fundamental abandonar essa concepção, que se poderia chamar de teleológica, do desenvolvimento da sociedade e do sentido da história, ainda que ela afirme basear-se em pressupostos científicos.
Economicismo e materialismo histórico
Foucault, nessa discussão do “como” do poder, pergunta: “a análise do
poder ou dos poderes pode ser, de uma maneira ou de outra, deduzida da
economia?”. Refletindo sobre a questão, pondera que, apesar das
significativas diferenças, “existe um ponto em comum entre a concepção
jurídica ou liberal do poder político – tal como encontramos nos
filósofos do século XVIII – e a concepção marxista, ou uma certa
concepção corrente que passa como sendo a concepção marxista. Este
ponto em comum é o que chamarei o economicismo na teoria do poder”.[MP,
p. 174]
“Com isto quero dizer o seguinte: no caso da teoria jurídica clássica,
o poder é considerado como um direito de que se seria possuidor como de
um bem e que se poderia, por conseguinte, transferir ou alienar, total
ou parcialmente, por um ato jurídico ou um ato fundador de direito, que
seria da ordem da cessão ou do contrato. O poder é o poder concreto que
cada indivíduo detém e que cederia, total ou parcialmente, para
constituir um poder político, uma soberania política. Neste conjunto
teórico a que me refiro, a constituição do poder político se faz
segundo o modelo de uma operação jurídica que seria da ordem da troca
contratual. Por conseguinte, analogia manifesta, que percorre toda a
teoria, entre o poder e os bens, o poder e a riqueza. No outro caso –
concepção marxista geral do poder – nada disto é evidente; a concepção
marxista trata de outra coisa, da funcionalidade econômica do poder.
Funcionalidade econômica, no sentido em que o poder teria
essencialmente como papel manter relações de produção e reproduzir uma
dominação de classe que o desenvolvimento e uma modalidade própria da
apropriação das forças produtivas tornaram possível. O poder político
teria, neste caso, encontrado na economia sua razão de ser histórica.
De modo geral, em um caso temos um poder político que encontraria no
procedimento de troca, na economia da circulação dos bens o seu modelo
formal e, no outro, o poder político teria na economia sua razão de ser
histórica, o princípio de sua forma concreta e do seu funcionamento
atual.” [MP, pp. 174-175]
Questionando ambas as abordagens, Foucault coloca algumas perguntas.
“Em primeiro lugar, o poder está sempre em posição secundária em
relação à economia, ele é sempre ‘finalizado’ e ‘funcionalizado’ pela
economia? Tem essencialmente como razão de ser e fim servir a economia,
está destinado a fazê-la funcionar, a solidificar, manter e reproduzir
as relações que são características desta economia e essenciais ao seu
funcionamento? Em segundo lugar, o poder é modelado pela mercadoria,
por algo que se possui, se adquire, se cede por contrato ou por força,
que se aliena ou se recupera, que circula, que herda esta ou aquela
região? Ou, ao contrário, os instrumentos necessários para analisá-lo
são diversos, mesmo se efetivamente as relações de poder estão
profundamente intrincadas nas e com as relações econômicas e sempre
constituem com elas um feixe?”[MP, p. 175] Uma breve resposta parece
apontar o caminho: “neste caso, a indissociabilidade da economia e do
político não seria da ordem da subordinação funcional nem do
isomorfismo formal, mas de uma outra ordem, que se deveria explicitar”,
afirmando, portanto, um vínculo estreito entre economia e política.
Enfatizando sua posição do poder como relação de força, Foucault
coloca: “Para fazer uma análise não econômica do poder, de que
instrumentos dispomos hoje? Creio que de muito poucos. Dispomos da
afirmação que o poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas se
exerce, só existe em ação, como também da afirmação que o poder não é
principalmente manutenção e reprodução das relações econômicas, mas
acima de tudo uma relação de força.”[Ibid.] Retorna, aqui, às reflexões
conceituais sobre o poder e afirma duas posições: por
um lado, nega que o poder seja somente a manutenção e reprodução da
economia, por outro, volta a afirmar o poder como relação de força.
O “economicismo” na teoria do poder, coloca Foucault, bastante
reforçado durante o século XIX, conseguiu-se impor para significativa
parcela dos teóricos do poder e da política em geral. “O século XIX nos
prometera que, no dia em que os problemas econômicos se resolvessem,
todos os efeitos de poder suplementar excessivo estariam
resolvidos.”[EPS, p. 225] Com isso, acreditou-se que a esfera econômica
implicaria uma determinação necessária e obrigatória das outras esferas
e que, sendo as questões econômicas resolvidas, as outras também
necessariamente seriam. Mas segundo acredita o autor, não foi isso que
o século XX mostrou. “O século XX descobriu o contrário: “podem-se
resolver todos os problemas econômicos que se quiser e os excessos do
poder permanecem”[Ibid.], parecendo aludir às experiências do
“socialismo real”.
Nesse sentido, a economia, ainda que explique parcialmente o
poder, não o explica na sua totalidade; análise que também seria válida
para uma tentativa de reduzir uma explicação do poder às categorias
classe/exploração. “Talvez não baste dizer que, por trás dos
governos, por trás dos aparelhos de Estado, há a classe dominante; é
preciso situar o ponto de atividade, os lugares e as formas sob as
quais se exerce essa dominação. É porque essa dominação não é
simplesmente a expressão, em termos políticos, da exploração econômica,
ela é seu instrumento, em ampla medida a condição que a torna possível;
a supressão de uma se realiza pelo discernimento exaustivo da
outra.”[EPS, p. 115] Ou seja, é preciso entender o “aonde” e o “como”
dessas relações, sabendo que elas podem ser produto ou produtoras da
economia.
Essa posição termina por afastar Foucault do materialismo histórico
que, segundo acredita, buscaria “situar na base do sistema as forças
produtivas, em seguida as relações de produção para se chegar à
superestrutura jurídica e ideológica, e finalmente ao que dá a sua
profundidade, tanto ao nosso pensamento quanto à consciência dos
proletários”. Na realidade, para ele, “as relações de poder são [...]
ao mesmo tempo mais simples e muito mais complicadas”. Explica;
“simples, uma vez que não necessitam dessas construções piramidais; e
muito mais complicadas, já que existem múltiplas relações entre, por
exemplo, a tecnologia do poder e o desenvolvimento das forças
produtivas. Não se pode compreender o desenvolvimento das forças
produtivas a não ser que se balizem, na indústria e na sociedade, um
tipo particular ou vários tipos de poder em atividade – e em atividade
no interior das forças produtivas. O corpo humano é, nós sabemos, uma
força de produção, mas o corpo não existe tal qual, como um artigo
biológico ou como um material. O corpo existe no interior e através de
um sistema político. O poder político dá um certo espaço ao indivíduo:
um espaço onde se comportar, onde adaptar uma postura particular, onde
sentar de uma certa maneira, ou trabalhar continuamente. Marx pensava –
e ele o escreveu – que o trabalho constitui a essência concreta do
homem. Penso que essa é uma idéia tipicamente hegeliana. O trabalho não
é a essência do homem. Se o homem trabalha, se o corpo humano é uma
força produtiva, é porque ele é investido por forças políticas, porque
ele é capturado nos mecanismos de poder”. [EPS, p. 259]
Portanto, para o autor, uma compreensão mais aprofundada do
poder não pode ser resumir ao que ele chamou de “economicismo”, que
implica uma determinação, necessária e obrigatória, em todos os casos,
da esfera econômica em relação às outras esferas – esquema que, no
campo do marxismo, ficou conhecido como a determinação da
infra-estrutura da sociedade em relação à sua superestrutura – posição
que o afasta do materialismo histórico. Uma compreensão do poder,
assim, deveria negar o economicismo e o materialismo histórico como
método de análise e buscar compreender as relações entre as diferentes
esferas, a dependência entre elas e tudo aquilo que envolve as relações
que se dão nesse sentido. O conceito central para se compreender a humanidade não é o trabalho, mas o poder.
O modus operandi do poder
Para Foucault, “onde há poder, ele se exerce”.[MP, p. 75] Essa
afirmação permite voltar brevemente à primeira questão sobre o poder, e
enfatizar que o poder implica relações de forças reais, que estão implicadas em uma determinada realidade social; o que afasta, dessa maneira, a noção de definição do poder simplesmente como capacidade, ou seja, como força potencial.
Se onde há poder, ele se exerce, na realidade não há relação de poder
sem dinamismo, sem constante movimento, já que o poder seria, antes de
tudo, uma interação de forças que nunca cessa, que não vacila: “a
impressão de que o poder vacila é falsa, porque ele pode recuar, se
deslocar, investir em outros lugares... e a batalha continua”.[MP, p.
146] Esse sentido de batalha em permanente continuidade explicita o dinamismo constante do poder, que não poderia, nesse sentido, ser compreendido como uma relação estática e sem movimento.
“O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo
que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca
está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem.
O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas, os indivíduos
não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de
sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são
sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica
aos indivíduos, passa por eles.”[MP, p. 183] A noção dinâmica do poder
que funciona em cadeia, em rede, estando, como se viu, em todos os
lugares, permite que Foucault afirme que não é possível falar em
“poder” como algo monolítico, algo que pode ser absorvido ou tomado por
um indivíduo, por uma organização, por uma classe em particular. Como o
poder se dá nas relações sociais, existem milhões, bilhões de
infindáveis relações sociais que constituem poder; por isso a afirmação
de que o poder não está necessária e completamente com um ou com outro.
Nessas
infindáveis relações de poder, o poder pode estar com um ou com outro,
e esse amplo leque de possibilidades dá espaço à idéia de que todos os
indivíduos, grupos, organizações etc. podem ter posições distintas
nessas múltiplas relações de poder; em alguns momentos exercem as relações de poder, em outros, sofrem suas conseqüências. Todos, nesse sentido, são agentes capazes de receber e transmitir, e podem, dependendo da relação que se analisa, ter diferentes papéis no jogo de forças que é sempre desigual.
Essa desigualdade de forças que caracteriza a relação de poder faz, necessariamente, que exista um centro e uma periferia, um ‘em cima’ e um ‘em baixo’:
“na medida em que as relações de poder são uma relação desigual e
relativamente estabilizada de forças, é evidente que isto implica um em
cima e um em baixo, uma diferença de potencial”.[MP, p. 250] No
entanto, esse reconhecimento de que existem centro e ‘em cima’,
periferia e ‘em baixo’, implicaria, na dinâmica do poder, entender que
o poder emana do centro, ou da parte superior dessa pirâmide? Para
Foucault, não.
“E evidente que, em um dispositivo como um exército ou uma oficina, ou
um outro tipo de instituição, a rede do poder possui uma forma
piramidal. Existe, portanto, um ápice; mas, mesmo em um caso tão
simples como este, este ‘ápice’ não é a ‘fonte’ ou o ‘principio’ de
onde todo o poder derivaria como de um foco luminoso (esta é a imagem
que a monarquia faz dela própria). O ápice e os elementos inferiores da
hierarquia estão em uma relação de apoio de condicionamento recíprocos;
eles se ‘sustentam’ (o poder, ‘chantagem’ mútua e indefinida).”[MP, p.
221] O poder, portanto, não tem uma fonte fixa, um princípio gerador original, constante e estático e emana de diversos agentes envolvidos na relação.
Essa visão torna complexa a análise da origem das relações de poder, e
impossibilita qualquer teoria que generalize o surgimento dessas
relações, formulando posições que podem ser aplicadas em quaisquer
casos, independente do contexto – ainda que essas posições se
fundamentem nas classes sociais. “Mas se você me pergunta: esta nova
tecnologia de poder historicamente teve origem em um indivíduo ou em um
grupo determinado de indivíduos que teriam decidido aplicá-la para
servir a seus interesses e tornar o corpo social passível de ser
utilizados por elas, eu responderia: não. Estas táticas foram
inventadas, organizadas a partir de condições locais e de urgências
particulares. Elas se delinearam por partes antes que uma estratégia de
classe as solidificasse em amplos conjuntos coerentes. E preciso
assinalar, além disso, que estes conjuntos não consistem em uma
homogeneização, mas muito mais em uma articulação complexa, através da
qual os diferentes mecanismos de poder procuram apoiar-se, mantendo sua
especificidade. A articulação atual entre família, medicina,
psiquiatria, psicanálise, escola, justiça, a respeito das crianças, não
homogeneíza estas instâncias diferentes, mas estabelece entre elas
conexões, repercussões, complementaridades, delimitações, que supõem
que cada uma mantenha, até certo ponto, suas modalidades próprias.”[MP,
221-222] O poder, desse ponto de vista, não se origina sempre na classe dominante. Entretanto, essa afirmação contra as generalizações não
impede que se análise, em cada uma dessas relações, ou mesmo em um
conjunto determinado de relações, as forças em jogo e como estão se
colocando essas forças nas relações de poder.
Parece-me que a afirmação de que não se pode generalizar como surgem as
relações de poder não implica que, em uma relação de poder dada, ou
mesmo em um conjunto delas, seja impossível saber quais são as forças
em jogo, quais estão influenciando, determinando, se sobrepondo às
outras, e de onde partem essas forças. Segundo Foucault, não se poderia
dizer que as relações de poder se originam na classe dominante; no
entanto, isso não significa negar que, em diversas relações de poder, a
classe dominante possa ser a fonte do poder ou mesmo exercer poder em
relação a outras classes. O que se nega, parece-me, é uma origem que
poderia ser teoricamente determinada e aplicada em todos os casos.
Se a origem não pode ser determinada de antemão, o sentido das relações de poder também não pode. Foucault não acredita que seja possível prever um sentido na dinâmica do poder: ela implicaria relações em todos os sentidos, ou seja: do centro da periferia, da periferia para o centro, do cume para a base, da base para o cume.
Uma relação de “subida” e “descida”, conforme colocada o autor: “de
modo geral, penso que é preciso ver como as grandes estratégias de
poder se incrustam, encontram suas condições de exercício em
micro-relações de poder. Mas sempre há também movimentos de retorno,
que fazem com que as estratégias que coordenam as relações de poder
produzam efeitos novos e avancem sobre domínios que, até o momento, não
estavam concernidos.”[MP, p. 249] É necessário, portanto, avaliar
sempre os dois sentidos: de cima para baixo, e de baixo para cima.
A preocupação de Foucault, que foi sempre mais voltada ao micro-poder
do que ao macro, fez com que, mesmo sem negar o movimento do centro
para a periferia, do cume para a base, ele priorizasse, no que diz
respeito às relações de poder, as análises da periferia para o centro,
da base para o cume. Ele defende que é relevante “fazer uma análise
ascendente do poder: partir dos mecanismos infinitesimais que têm uma
história, um caminho, técnicas e táticas e depois examinar como estes
mecanismos de poder foram e ainda são investidos, colonizados,
utilizados, subjugados, transformados, deslocados, desdobrados, etc.,
por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de dominação global.
Não é a dominação global que se pluraliza e repercute até embaixo.
Creio que deva ser analisada a maneira como os fenômenos, as técnicas e
os procedimentos de poder atuam nos níveis mais baixos; como estes
procedimentos se deslocam, se expandem, se modificam; mas sobretudo
como são investidos e anexados por fenômenos mais globais.”[MP, p. 184]
Portanto, deve-se ter em mente que, ainda que as relações de
poder permitam identificar um centro, um ápice, uma periferia, uma
base, isso não significa prever de antemão a origem desse poder e nem o
fluxo dessas relações que, para Foucault, podem estar em qualquer um
dos pontos e se dar de cima para baixo ou de baixo para cima, do centro
para a periferia ou da periferia para o centro.
Sobre esses mesmos pressupostos teóricos, Foucault analisa as relações
entre as distintas esferas da sociedade. A mesma lógica utilizada nas
relações centro-periferia, ápice/cume-base, servem aqui para uma
reflexão sobre as esferas. Trabalhando ainda com a divisão das esferas
proposta anteriormente
(econômica/política-jurídica-militar/cultural-ideológica), pode-se
afirmar que o autor, assim como nega uma origem pré-determinada do
poder nas relações verticais, defende que o poder não surge
necessariamente em uma esfera específica e nem tem um sentido único
entre elas, nessas relações que poderiam ser chamadas de horizontais.
Nesse sentido, o poder não emanaria, obrigatoriamente, da esfera
política ou da econômica, e nem teria alguma esfera específica como
necessariamente determinante. O
poder poderia emanar das distintas esferas e influenciar-se mutuamente,
variando, em sua origem e no sentido de suas relações, em cada caso.
Em diversas situações, Foucault trata das relações estritas entre as
esferas nas relações de poder. Acredita que a economia pode determinar
a política, mas a relação indissociável entre uma e outra poderia fazer
com que a política também determinasse a economia. O mesmo com a
questão da cultura-ideologia, que poderia ser determinada pela economia
ou a política, mas também as determinar. Por exemplo, o
político-jurídico, na forma dos tribunais, poderia forjar uma cultura
capaz de influenciar o cultural-ideológico; ao mesmo tempo, os saberes,
as distintas concepções de verdade seriam capazes de influenciar o
político-jurídico. A disciplina das escolas, influenciar o
político-militar e vice-versa. A cultura de subserviência e o
adestramento do corpo poderiam influenciar a economia, assim como a
fábrica poderia forjar uma determinada cultura. A classe dominante
poderia forjar o desenvolvimento do Estado e ser ao mesmo tempo forjada
por ele etc. Em suma, as origens e as relações entre as esferas se
dariam nos mais diversos sentidos.
Pode-se dizer, com base na argumentação exposta, que, para Foucault, o modus operandi do poder implica múltiplos sentidos, múltiplas origens e influências, tanto verticais, como horizontais.
O fato de as relações de poder se darem em todo o corpo social permite afirmar que, para o autor, “onde há poder, há resistência”.
“A análise dos mecanismos de poder não tende a mostrar que o poder é ao
mesmo tempo anônimo e sempre vencedor. Trata-se, ao contrário, de
demarcar as posições e os modos de ação de cada um, as possibilidades
de resistência e de contra-ataque de uns e de outros.”[MP, p. 226] A
dinâmica das relações de poder implica que, nas inúmeras correlações de
forças da sociedade, ainda que algumas se imponham, haverá sempre
resistências. “A partir do momento em que há uma relação de poder, há
uma possibilidade de resistência. Jamais somos aprisionados pelo poder:
podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e
segundo uma estratégia precisa.”[MP, p. 241]
Com essa posição, Foucault rechaça as críticas que lhe foram feitas; os
críticos afirmaram que, já que o poder está em todos os lugares, não há
possibilidade de resistência: “As relações de poder são relações de
força, enfrentamentos, portanto, sempre reversíveis. Não há relações de
poder que sejam completamente triunfantes e cuja dominação seja
incontornável. Com freqüência se disse – os críticos me dirigiram esta
censura – que, para mim, ao colocar o poder em toda parte, excluo
qualquer possibilidade de resistência. Más é o contrário! Quero dizer
que as relações de poder suscitam necessariamente, apelam a cada
instante, abrem a possibilidade a uma resistência, e é porque há
possibilidade de resistência e resistência real que o poder daquele que
domina tenta se manter com tanto mais força, tanto mais astúcia quanto
maior for a resistência.”[EPS, p. 222] Assim, a resistência se dá
juntamente com o poder e possui características semelhantes: “Esta
resistência de que falo não é uma substância. Ela não é anterior ao
poder que ela enfrenta. Ela é coextensiva a ele e absolutamente
contemporânea. [...] Para resistir, é preciso que a resistência seja
como o poder. Tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto ele. Que,
como ele, venha de ‘baixo’ e se distribua estrategicamente.”[MP, p.
241] Resistência que, em alguns casos, é chamada pelo autor de
“contra-poder”.
Fechando, e novamente, a título de exercício teórico, buscarei uma
possível resposta de Foucault para a questão: Como se constitui o poder
e como funcionam as relações de poder?
Compreender a constituição e o funcionamento do poder e das
relações de poder implica o abandono de duas noções teóricas que estão
presentes nas teorias do poder: primeiramente, a idéia de que haveria
um progresso ou uma evolução obrigatória da sociedade; e segundo, o
economicismo e o materialismo histórico. O sentido do desenvolvimento
da sociedade não está pré-determinado e é o resultado das distintas
forças em jogo e, portanto, das relações de poder. O poder constitui-se
em relações dinâmicas, sendo, por isso, impossível pensar nele como
algo estático, sem movimento. As múltiplas relações de poder permitem
que todos, dependendo da relação avaliada, possam exercer o poder ou
sofrer suas conseqüências. Ainda que se possa, nas relações de poder,
identificar uma estrutura piramidal, um centro e uma periferia, isso
não significa que exista uma origem única do poder ou mesmo um sentido
sempre igual das relações de poder: elas podem surgir no cume ou na
base, na periferia ou no centro e deslocar-se de um sentido a outro.
Princípio que também norteia a reflexão sobre as esferas da sociedade,
permitindo afirmar que o poder pode surgir nas diferentes esferas e ter
determinações múltiplas, que não têm como ser previstas a priori.
Portanto, só se pode analisar a constituição do poder e o funcionamento
das relações de poder a partir de casos concretos, em que se buscará
identificar as forças em jogo, quais têm preponderância em relação a
outras, onde estão as origens dessa relação de poder. Não é possível
estabelecer uma fórmula teórica que identifique uma origem ou um
sentido permanente das relações de poder, válida para todos os casos.
As relações de poder convivem permanentemente com resistências,
contra-poderes, que dão a elas um dinamismo e exigem dos detentores de
poder que mantenham suas forças superiores às da resistência, caso
pretendam se manter no poder.
Método de análise e estratégia
É relevante destacar que o método de análise colocado até aqui se
distingue da estratégia, do projeto de atuação de Foucault. Deve-se
pontuar que toda
a força de seu método de análise, ou de sua “teoria do poder”, está no
fato de ela oferecer uma ferramenta consistente para a leitura da
realidade. Um método que funcionou bem para os objetos que
Foucault se dispôs a estudar; todos eles no campo das micro-relações de
poder. Assim, utilizar essa teoria para pensar a macro-política exige
um esforço de adaptação que não me parece pequeno.
Outro fato a ser destacado é que, depois do estudo da realidade, com a
utilização de um determinado método, a resposta sobre “o que fazer” é
um assunto completamente distinto. E parece-me que a força de Foucault
está muito mais no método de análise proposto, nessa sua “teoria do
poder”, do que nas estratégias defendidas para uma intervenção na
realidade, ou mesmo em algum tipo de projeto mais amplo a ser buscado
nesse complexo jogo de forças.
Parece-me, também, que os elementos que o autor traz, e que permitem
pensar uma estratégia, são infinitamente inferiores às suas
contribuições teóricas para um método adequado de análise da realidade,
ainda que ele pontue algumas necessidades relevantes em termos
estratégicos: de se falar sobre o poder[MP, p. 76], de trazer o inimigo
à tona[EPS, p. 114]; de se começar o combate dentro da sua própria
atividade (ou passividade)[MP, p. 77]; de se buscar incluir no
movimento revolucionário visões críticas de temas como prisão, gênero,
opção sexual, hospitais psiquiátricos, etc.[MP, p. 78] e também desse
movimento revolucionário não reproduzir as relações dos aparelhos de
Estado[MP, p. 150]; de não se utilizar o Estado como modelo para as
novas formas de organização[MP, p. 60].
Todas essas, são contribuições estratégicas relevantes, mas que, se
colocadas ao lado de suas reflexões de método, tornam-se, de fato,
pequenas, fundamentalmente pela envergadura, sem dúvida enorme, da sua “teoria do poder”.
______
* Michel Foucault. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2005. 21ª edição da obra organizada por Roberto Machado. Michel Foucault. Estratégia Poder-Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. 2ª edição da obra organizada por Manoel Barros da Motta.
Notas:
1. Para as referências bibliográficas, utilizarei EPS para Estratégia Poder-Saber e MP para Microfísica do Poder.
2. Ver, por exemplo, o brilhante estudo: Tomaz Ibañez. Poder y Libertad. Barcelona: HoraSA, 1982. Nele, o autor, além de retomar praticamente toda a literatura sobre o tema “poder” disponível até aquele momento, aprofunda e filia-se à escola de pensamento de Foucault e, nesse sentido, aprofunda de maneira muito mais completa e totalizante do que faço nesse artigo.
3. Agradeço as críticas do texto realizadas pelo veterano companheiro A., “o Pequeno”, que, autodidata e conhecedor da obra foucaultiana, discordou de diversos pontos de minha abordagem e fez críticas que me fizeram modificar algumas partes do texto e também realizar reflexões presentes nesses parágrafos introdutórios.
4. O “significado forte” de ideologia, a compreende como “crença falsa”, “conceito negativo que denota precisamente o caráter mistificante de falsa consciência de uma crença política”. O “significado fraco”, a considera “um conjunto de idéias e de valores respeitantes à ordem pública e tendo como função orientar comportamentos políticos coletivos” ou mesmo como “um sistema de idéias conexas com a ação”, que compreendem “um programa e uma estratégia para sua atuação”. Cf. Norberto Bobbio et alli. Dicionário de Política. Brasília: Editora UNB, 2004, pp. 585-587.