Menos complacência, mais autocrítica
Sobre a necessidade de haver menos
complacência e mais autocrítica no movimento anarquista. Um texto sobre
liberdade, ética e responsabilidade coletiva.
Introdução
As palavras confiáveis não são belas,
as palavras belas não são confiáveis
(Tao Te Ching)
Um velho militante anarquista, que tivera de se exilar em Paris por conta de sua atividade política, relatara em uma entrevista, que sentira certa inadaptação com o “relaxamento” ético da geração mais nova dos anarquistas que travara contato.
as palavras belas não são confiáveis
(Tao Te Ching)
Um velho militante anarquista, que tivera de se exilar em Paris por conta de sua atividade política, relatara em uma entrevista, que sentira certa inadaptação com o “relaxamento” ético da geração mais nova dos anarquistas que travara contato.
Esta “inadaptação” sentida pelo velho
combatente, longe de ser uma reminiscência de valores “obsoletos”,
traduzia uma diferença de compreensão sobre um valor que é central na
prática política anarquista. Este militante da “velha guarda”, afirmava
também em seu relato, que sua adesão ao anarquismo se dera muito mais
pela observação do comportamento e da coerência política de seus
aderentes, do que propriamente na leitura dos chamados “clássicos”. A
ética de seus companheiros, a solidariedade, o estilo militante com que
estes renovavam pelo cotidiano sua adesão aos princípios libertários,
convenciam mais do ponto de vista ideológico nosso antigo combatente,
do que a leitura de dezenas de livros, jornais ou brochuras
revolucionárias.
Tal espírito de camaradagem e de apoio
mútuo, de coerência cotidiana entre os fins desejados e os meios
respectivos, se inseria num contexto de profundo enraizamento do
anarquismo na classe trabalhadora. Enraizamento que se traduzia no
desenvolvimento de uma ética anarquista que possuía ligações estreitas
com os dilemas, anseios e problemas da classe trabalhadora.
Obviamente, a ética anarquista recebera
suficiente atenção dos clássicos para se referenciar como a “espinha
dorsal” da prática política de seus partidários, algo imprescindível
aos que propugnavam a defesa dos métodos libertários. Mas como o artigo
em questão não se pretende um panegírico de uma
suposta “superioridade” ética dos anarquistas sobre as demais correntes
da esquerda, o que nos levaria a estudarmos o comportamento dos anjos e
dos seres sobrenaturais; não seria demasiado afirmar que a discussão da
ética e da liberdade para alguns setores anarquistas, ainda se
constitui como um problema muito mal discutido.
O primeiro sinal deste problema, do
ponto de vista imediato, é observarmos atitudes indiferentes, ou
francamente contrárias ao espírito libertário sublinhado por nosso
velho militante. A falta quase que permanente de autocrítica [1]
nos meios libertários indica que a questão é alvo de terríveis
confusões. A liberdade é reiteradamente confundida com “fazer o que
quiser”. A autonomia individual deturpada num relativismo ético
preocupante e que pouco tem a ver com o comportamento e a
responsabilidade coletiva que o anarquismo propugnou. A crítica a
determinadas e reiteradas atitudes, são vistas como “autoritarismo”, ou
“coerção” da liberdade “individual”. Ser anarquista, longe de
engajar-se num projeto coletivo, passou a designar apenas, àqueles que
fazem “tábula rasa” de quaisquer convenções, leis ou regras
instituídas. A teorização e a defesa de um anarquismo voltado à luta
popular, simplesmente a retomada de posições que sempre fizeram parte
da história do anarquismo, é vista como uma “tentativa de excluir as
outras tendências do anarquismo”, estabelecer “verdades”, ou
simplesmente, quando há alguma iniciativa de organizar os anarquistas
especificamente, um sinal indefectível do terrível sintoma anarco-bolchevique.
Obviamente, mesmo que estes setores
sejam minoritários, causam uma má impressão enorme sobre a compreensão
do anarquismo. Nenhuma propaganda positiva sobre o anarquismo pode
superar em grau, a inconseqüência de determinados comportamentos, a
amplitude de posições extremamente contraditórias com aquilo que os
anarquistas defenderam durante a história, quando sabemos, que mais
importante que o que se escreve e o que se diz, é a coerência entre o
que se fala e o que se faz. De qualquer modo, ao realizarmos um
trabalho de crítica, nos guiamos pelo espírito de debate e discussão
franca, não pelo comportamento acusatório e anônimo das redes
informais. A intenção é problematizar determinadas questões, não
imprimir acusações ou definir rótulos reducionistas. Não pretendi
escrever um artigo acadêmico, mas um documento de reflexão e
autocrítica. Reitero também, que parte deste documento é também fruto
do acúmulo socializado pelos anarquistas da “velha guarda” aos mais
jovens. Não se trata de reproduzir tudo o que os mais “velhos” fizeram
ou pensam, mas de não perder a experiência de anos de militância por
uma iconoclastia estéril. Cabe também a nova geração, tentar não
reproduzir os erros da antiga.
A ética e a liberdade anarquista criaram raízes no terreno da classe trabalhadora e do socialismo
O anarquismo pode ser compreendido
enquanto uma ideologia, ou seja, um “conjunto de idéias, motivações,
aspirações, valores, estrutura ou sistema de conceitos que possuem uma
conexão direta com a ação” (FARJ, 2008: 17 [grifos nossos]). Esta
ideologia deve ser contextualizada. Surge diretamente, como sabemos;
dos dilemas, problemas e anseios da classe trabalhadora, e da prática
política dos libertários nas entidades de classe. A história é
relativamente conhecida: a anulação do grupo opositor. A ala
antiautoritária da Associação Internacional dos Trabalhadores no
congresso de Haia é “excluída”. O grupo próximo a Bakunin articula-se
no bojo do congresso dos operários relojoeiros do Jura, em Saint-Imier.
Nasce simbolicamente o anarquismo, que rapidamente se “alastra” como
uma ferramenta revolucionária de transformação social, implicando não
somente uma metodologia para o nascente sindicalismo, mas também, uma
ética anarquista, profundamente conectada com a realidade dos
trabalhadores. A simples negação do estado não é suficiente para definir alguém como anarquista [2]
. O surgimento do anarquismo atesta esta tese. O anarquismo se
desenvolveu não só a partir da negação do estado, mas de princípios
correlatos: igualdade econômica, ação direta, classismo, etc.
Já a liberdade, foi conceituada no
movimento anarquista pela primeira vez por Mikhail Bakunin, que não fez
nada mais do que sistematizar questões relevantes no interior do setor
do movimento operário influenciado pelo espírito “libertário”. Ao
conceito abstrato e filosófico de “liberdade absoluta”, Bakunin
desenvolveu uma idéia de liberdade essencialmente coletiva [3]
. O homem; alertava, só pode ser livre quando “todos os homens forem
livres”, o que é impossível na sociedade capitalista. A liberdade
segundo os anarquistas implica o reconhecimento das instituições
políticas, econômicas e sociais que limitam a liberdade humana e
dominam a classe trabalhadora. Reconhecê-las também significa traçar
estratégias coletivas para superarem-nas: estratégias
que tenham como objetivo finalista o “socialismo libertário”. O termo
socialista libertário não é, portanto, um mero adorno identitário, mas
diz respeito ao objetivo finalista dos anarquistas, que percorreu toda
a história do movimento.
Estas estratégias envolvem
necessariamente o conjunto dos oprimidos; o povo. O anarquismo;
alertava Kropotkin, só pode florescer no meio do povo. Mas nem sempre,
o anarquismo fora (ou é) compreendido desta forma.
As influências burguesas sobre o anarquismo
Luigi Fabbri, em um opúsculo relativamente conhecido na literatura anarquista [Influências Burguesas sobre o Anarquismo],
publicado depois do final da Primeira Guerra Mundial, retratou com
grande precisão, os danos que determinados estereótipos construídos
pelos jornais burgueses e pela literatura ficcional, fizeram ao
anarquismo enquanto um movimento de classe. Fabbri espantava-se com a
introjeção feita por determinados setores do anarquismo, da caricatura
burguesa sobre os anarquistas, rascunhada pelos jornais das elites em
seus periódicos. Surpreendentemente, muitos anarquistas assumiam
comportamentos, estratégias e práticas que eram parte da representação
cultural burguesa sobre o anarquismo. O anarquista enquanto um inimigo
declarado de “qualquer” moral, terrorista, ou um indivíduo que
desprezava qualquer deliberação coletiva se aproxima mais do imaginário
niilista cunhado pela literatura burguesa, do que propriamente das
estratégias delineadas pelos anarquistas no ambiente da classe
trabalhadora. Esta crítica fora recorrente ao longo da história do
anarquismo. Malatesta compreendera a influência nefasta dessa
deturpação do princípio socialista do anarquismo.
Há indivíduos fortes, inteligentes, apaixonados, [...] que, encontrando-se por acaso entre os oprimidos, querem, a qualquer custo, emancipar-se e não se ofendem em transformar-se em opressores: indivíduos que, sentido-se prisioneiros na sociedade atual, chegam a desprezar e a odiar toda a sociedade, e ao sentir que seria absurdo querer viver fora da coletividade humana, buscam submeter todos os homens e toda a sociedade à sua vontade e à satisfação de seus desejos. Às vezes, quando são pessoas instruídas, consideram-se super-homens. Não se sentem impedidos por escrúpulos, querem “viver suas vidas”. Ridicularizam a revolução e toda aspiração futura, desejam gozar o dia de hoje a qualquer preço, e à custa de quem quer que seja; sacrificariam toda a humanidade por uma hora de “vida intensa” (conforme seus próprios termos).
Estes são rebeldes, mas não anarquistas.
[...]
Pode ocorrer algumas vezes que, nas circunstâncias dinâmicas da luta, os encontremos ao nosso lado, mas não podemos, não devemos e nem desejamos ser confundidos com eles. E eles sabem muito bem disso. Contudo, muitos deles gostam de chamar-se anarquistas. É certo – e também deplorável.
(MALATESTA, Errico. Anarquismo e Anarquia.)
O que Malatesta chama de “rebeldes”,
Berneri chamou de “cretinismo anarquista”, que vigorou minoritariamente
não apenas no final do século XIX, mas dominou determinados setores
também nas primeiras décadas do século XX. O individualismo anarquista
baseava-se em teóricos completamente exógenos ao
anarquismo. Stirner, Tucker, Nietzsche, jamais se assumiram
anarquistas, este último inclusive, promoveu um ataque vigoroso ao
anarquismo em diversos de seus escritos. O socialismo era visto com
desdém por estes pensadores; não nos surpreende, portanto, que estes
estivessem distantes das privações materiais suportadas pelos
trabalhadores ou distantes do comprometimento com quaisquer doutrinas
socialistas. E como vimos, se a simples negação do estado é
problemática para definir os anarquistas, precisamos incluir outros
princípios, estratégias e metodologias que estão imbricadas na própria
formação histórica do anarquismo. Os anarquistas que atuavam nos
sindicatos revolucionários das três primeiras décadas do século XX
pareciam estar cientes desse dilema, pois estes enxergavam o
anarco-individualismo normalmente como um “exotismo pequeno-burguês” [4]
, completamente inofensivo ao capitalismo e ao estado, algo restrito a
artistas, boêmios, literatos, e outras figuras que resolveram
afastar-se dos propósitos da classe trabalhadora.
Durante a Revolução Russa e Ucraniana,
setores influenciados por esta compreensão equivocada do anarquismo
acusavam o movimento revolucionário camponês da Ucrânia, profundamente
influenciado pelo anarquismo, de ser mais próximo dos
socialistas-revolucionários do que do anarquismo. Enquanto o grupo
anarquista de Makhno enfrentava os guardas-brancos e os bolcheviques no
flanco ucraniano arriscando suas próprias vidas pela revolução,
anarquistas de Moscou procuraram o exército insurgente ucraniano não
para apoiá-lo, mas para pedir dinheiro para a construção de uma
“universidade anarquista” [5] em Moscou. O desgosto
de Makhno com parte dos anarquistas da Rússia era anterior neste caso.
Em visita a Ekaterinoslav, uma cidade russa, Makhno encontrou um grupo
de anarquistas ocupando pacientemente o “Clube Inglês” enquanto a
revolução se desenrolava nos campos da Ucrânia e nos centros
industriais da Rússia. O ambiente do niilismo russo contribuía para que
parte dos anarquistas optasse por ações completamente descoladas da
classe trabalhadora, ainda que houvesse uma corrente mais comprometida,
atuando no interior dos sindicatos e dos sovietes.
Mas isto não explica a tendência centrípeta [6]
de um anarquismo voltado para si próprio, posto, que isto não é
exclusividade do individualismo anarquista nem do contexto histórico
russo. E pode rapidamente “contaminar” um grupo anarquista de qualquer
orientação, a ponto da ética anarquista, que é baseada no terreno da
classe trabalhadora, rapidamente tornar-se-á uma moral e uma prática
voltadas apenas para si mesmas. Este descolamento de determinados
setores do anarquismo da classe, operou uma transformação interna de
seus valores que se traduz numa deformação que em alguns casos chega a
ser grotesca.
Os limites desta nova moral
me pareceram mais nítidos quando soube de um caso de alguns anos atrás,
de um auto-intitulado anarquista que se vangloriara de ter roubado
(para si próprio) um livro anarquista de uma biblioteca pública.
Outro, contemporâneo do primeiro, foi além: assumiu ter “yomangado”
(roubado) livros anarquistas de uma banquinha de livros de um conhecido
editor de material libertário. O perigoso “burguês” roubado pelo nosso
amigo “revolucionário”, fora simplesmente o responsável
pela publicação da maior parte dos materiais libertários lidos pelos
anarquistas brasileiros nos últimos 10 anos, e cujo trabalho abnegado
de venda de livros, garantiu que toda uma geração (como eu) pudesse ter
acesso à literatura anarquista. O “yomango” (na gíria espanhola, “yo
mango”) se define não como “um movimento social, ou um grande projeto
de mudança”, mas como um “estilo de vida” [7] que não se oferece como uma “proposta ideal de futuro, mas como mais uma ponte e uma resistência ao capital” [8]
. Na prática, “yo mango” significa apenas a “expropriação” de
mercadorias capitalistas por pretensos anarquistas, geralmente em
benefício próprio. Que anarquista sensato e comprometido com um trabalho de base,
se arriscaria a ser preso não por desenvolver um projeto revolucionário
de amplitude, mas por “roubar” bebidas, livros e badulaques das
empresas capitalistas? Esta é a contribuição revolucionária de
alternativa econômica que oferecemos ao nosso povo?
Abandonadas as estratégias de transformação global da sociedade [9] que SEMPRE fizeram parte da luta dos anarquistas na história, o que sobra de anarquismo em “yomango” [10] ou em outras táticas semelhantes? A pergunta é: houve em algum momento, uma relação mais profunda
entre as duas coisas? Ou apenas uma tolerância irrestrita e
irresponsável de largos setores do anarquismo, a quaisquer práticas que
se pretendem libertárias?
Esta atitude moral, restrita ao seu próprio e limitado universo, normalmente vem acompanhada do sectarismo. O sectarismo é a “incapacidade de tolerar posições teóricas ou práticas diferentes das suas” [11] . Caracteriza-se “pela ignorância, tanto das idéias alheias, como de suas próprias” [12] . O sectário é “incapaz
de reconhecer os méritos alheios e carece de [...] critério para
discernir, [...] com o que está de acordo ou do que diverge: sua
atitude é de aceitação ou rechaço absolutos” [13]
. O que deriva daí, já é conhecido de maneira mais ou menos pública no
movimento anarquista (mas infelizmente pouco criticado), a “visão
de mundo do sectário é tão rígida, tão inflexível, tão fanática, tão
amarga [...] e pouco atrativa que acaba mais por espantar o povo do que
atraí-lo [...] [14] ”. Quantos exemplos podem ser
citados; por que os casos infelizmente são numerosos. Recordo-me apenas
de um habitual e mais recorrente, que é a inflexibilidade de uma
postura “anarquista” francamente agressiva (dentro de uma assembléia) à
religiosidade popular, que nitidamente ofendera parte dos presentes
(por coincidência os setores não-anarquistas).
Quando as pessoas “comuns” não correspondem às atitudes morais do fanático, o moralismo é curiosamente invertido. O moralista passa a ser não o sectário
que tentou impor seus valores ao coletivo, mas o culpado passa a ser
nosso povo, que não se despiu de sua “estreiteza”, em detrimento da
catequese e dos “preciosos” valores libertários do sectário. Uma
atitude claramente de vanguarda como esta, mesmo que
esteja supostamente baseada em “grandes” ideais de liberdade, ou se
proponha antiautoritária, é seguida dum comportamento acusatório mais
amplo. A censura, a repressão ao “indivíduo”, a opressão da
individualidade pela maioria são demagogicamente acionados num nítido
projeto de vitimização.
Se o sectarismo não atrai o povo,
convence largos setores da juventude, que pode o carregar nos ombros
como um verdadeiro atestado de “pureza” de princípios, mesmo sob o custo de reduzir consideravelmente o espectro de sua atividade política. Tal como o mito de Orígenes [15]
, que para manter-se puro decepou seus órgãos sexuais, o sectarismo
torna impotente a ação política mais ampla, por que permanece reduzida
a poucos círculos, cada vez mais restritos, mas que por sua força
atrativa, continuamente tem seus quadros renovados.
Compreendendo a ética como uma espinha dorsal do anarquismo [16]
, e, portanto, que define ao militante uma conduta, e a coerência entre
esta e seus princípios (classismo, ação direta, igualdade política,
econômica e social, autonomia, etc), entende-se que estes valores devem
ser “socializados”, pela maneira libertária, ou seja, pelo trabalho de base,
em contato com as tradições, a história e os costumes de nosso povo.
Trabalho que indispensavelmente, precisa para sobreviver, abandonar o
sectarismo e o estrabismo político, preservando o conceito de ética e
de liberdade, nos parâmetros da organização coletiva. A única capaz de não só potencializar nossas qualidades soterradas pela heteronomia instituída [17] das estruturas capitalistas, mas também de demonstrar sob o âmbito psíquico, que possuímos complexos [18]
e questões inconscientes, que não podem determinar a estratégia
política de uma organização ou movimento, e muito menos fazer de seus
membros, seus caprichosos reféns.
Liberdade e Ética nos parâmetros da organização coletiva
Partindo do pressuposto que elementos
exógenos, que possuem pouco compromisso com os princípios socialistas e
libertários do anarquismo, se inserem perifericamente neste, e,
portanto, corrompem o sentido da liberdade e da ética cunhada pelos
anarquistas durante a história das lutas da classe trabalhadora,
deveríamos nos perguntar qual é a abertura dada hoje pelos próprios
anarquistas a este tipo de fenômeno? Por que há tanto terreno fértil
para “aqueles que pescam nas águas revoltosas do anarquismo” [19]
? Recordo-me de um ato realizado numa grande cidade do sudeste do país,
onde houve uma intensa organização coletiva anterior a manifestação. No
desenrolar da manifestação, um sujeito atira uma pedra numa vidraça de
uma loja. Escudando-se no coletivo, o indivíduo que reivindicava de
forma “instintiva” o anarquismo, causou indiretamente a prisão de mais
de trinta manifestantes naquele dia, tudo por um ato isolado e que não
foi tirado pelo coletivo como parâmetro de ação.
Bem, partindo deste exemplo e do
princípio que o anarquismo em todo o seu desenvolvimento, seja teórico,
seja prático, de modo hegemônico conservou seu princípio socialista
libertário, e que o individualismo é um fenômeno marginal ao
anarquismo, há algumas questões importantes a se pontuar.
Um dos primeiros passos que podemos dar
é realizar um diagnóstico histórico, que se pretende muito preliminar.
De fato, o anarquismo sofreu um desgaste ideológico causado pela perda
de seu vetor social (sindicatos). Ao ser deslocado como um agente de
peso das lutas sociais, parte do anarquismo reforçou exclusivamente seu
caráter identitário, cada vez mais excêntrico aos problemas cotidianos
dos trabalhadores, em detrimento de um programa político e um trabalho
social de longo prazo. Para alguns setores isto se traduziu na falta de
esperança na transformação social, que fora rapidamente transformada
num semi-niilismo perturbador. Estes, que com exceção da negação do
estado, abandonaram a maior parte dos princípios anarquistas, mas
continuaram reivindicando-se anarquistas, utilizando muito pouco do
arsenal teórico que definiu a coluna vertebral do anarquismo
(Malatesta, Bakunin, Kropotkin, etc) flertando muito mais com as
tendências pós-modernas, muito bem descritas por Bookchin em seu título
seminal, “Anarquismo: Crítica e Autocrítica” [20]
. Este desgaste provocou a deturpação do conceito de organização dos
anarquistas. Organizar-se, daí para frente, tornar-se-ia sinônimo de
hierarquia, “partidarização”, autoritarismo. Privilegiou-se, em parte
do anarquismo contemporâneo, a fluidez das organizações “sem estrutura”.
Chegamos então ao primeiro ponto da questão. É justamente, a falta de estrutura organizativa clara que dá ampla margem ao que Archinov chamava dos que “pescam nas águas revoltosas do anarquismo”. Já está devidamente debatido, que as organizações sem estrutura,
longe de se prevenirem contra o autoritarismo e as “lideranças”,
possuem a função contrária, de reforçar os “líderes ocultos”. Líderes
que vão se mover no terreno mais primário e suscetível de convencimento
(geralmente inconsciente) do ser humano: o terreno afetivo [21] .
A ação coletiva é a partir daí
esvaziada de seu conteúdo político em detrimento de relações afetivas e
pessoais. Isto por que toda estrutura informal de deliberação, atua
segundo Jo Freeman, militante feminista dos anos 70, como uma
“irmandade”, “na qual se escuta as pessoas porque se gosta delas e não porque dizem algo significativo” [22]. Jo Freeman ainda vai além, e conclui:
Para que todas as pessoas tenham a oportunidade de se envolver num dado grupo e participar de suas atividades, é preciso que a estrutura seja explícita e não implícita. As regras de deliberação devem ser abertas e disponíveis a todos e isso só pode acontecer se elas forem formalizadas. Isto não significa que a normalização de uma estrutura de grupo irá destruir a estrutura informal. Ela normalmente não destrói. Mas impede a estrutura informal de ter o controle predominante e torna disponível alguns meios de atacá-la. A “ausência de estrutura” é organizacionalmente impossível.
(FREEMAN, Jo. A Tirania das Organizações Sem Estrutura, 1970.)
Regras de deliberação abertas e
disponíveis obviamente não esvaziam o papel das estruturas informais,
inclusive do afetivo, mas tornam os acordos coletivos muito mais claros
e minimizam seus efeitos. Sempre que uma atitude individualista
compromete um trabalho coletivo, é comum dentro do anarquismo, culpar o
próprio indivíduo por sua postura, o que parece do ponto de vista
imediato uma atitude acertada do grupo em relação às posturas pessoais.
Porém olhando de maneira mais atenta, percebemos que ao individualizar
o problema, preservamo-nos do real culpado, que é a falta de formalização de regras claras e bem definidas e a falta de acordos coletivos.
No caso específico dos grupos anarquistas, isto implica também definir
o que determinado grupo entende enquanto anarquismo. Quais são suas
estratégias? Quais são os acordos coletivos mínimos?
Isto nos leva a outra questão, que é a responsabilidade coletiva.
Mal discutida no movimento anarquista, tal questão gerou uma polêmica
quase que interminável; traduzida na discussão por cartas entre
Malatesta e Makhno. Infelizmente, a parcialidade e o maniqueísmo com que as leituras destas polêmicas são feitas, impedem de enxergar o acordo [23] feito por ambos os militantes sobre esta questão.
Quando algum individualista utiliza o
anarquismo para justificar suas ações deletérias dentro ou fora dos
movimentos sociais, companheiros bem intencionados, porém, imersos em
organizações sem-estrutura, se isentam de quaisquer intervenções para
não “parecerem autoritários”. A crítica a determinadas estratégias,
supostamente revolucionárias (yomango ou zonas autônomas temporárias,
sendo exemplos mais caricatos) não é feita por que se parte do
pressuposto de que os que as reivindicam não são anarquistas. Como
dizia Malatesta, não temos direito de “impedir ninguém de se chamar
do nome que quiser, nem podemos, por outro lado, abandonar o nome que
sucintamente exprime nossas idéias” [24]. As
críticas são feitas justamente por que estas estratégias não funcionam
sob uma perspectiva popular, aplacam mais a consciência de seus
responsáveis do que propriamente contribuem para a emancipação e a
difusão dos métodos e dos valores do anarquismo nos setores populares.
Possuindo por outro lado, o efeito colateral de tornar o anarquismo
muito pouco atrativo para nosso povo.
Uma organização ou grupo, que não trabalhe com o conceito de responsabilidade coletiva,
ou se negue a discuti-la abertamente, permanecerá refém destas
práticas, que se são ruins para os anarquistas, de todas as correntes,
são ainda pior para o anarquismo. No fundo, superando os que desejam
operar com maniqueísmos, era isso o que Makhno discutia com Malatesta
em sua famosa troca de correspondência, e que o anarquista italiano,
parece ter aceitado como um fator indispensável da ação política
organizada. Por isso é preciso ter mais autocrítica, e menos
complacência. Resta saber se muitos anarquistas estarão dispostos a
fazê-lo.
Notas:
[1] Cf. DANTON, José Gutiérrez. Problemas e Possibilidades do Anarquismo. São Paulo, Editora Faísca, 2011.
[2] Cf. SCHMIDT, Michael; WALT, Lucien Van Der. Black Flame: The Revolutionary Class Politics of Anarchism and Syndicalism. Oakland, Ak Press, 2009.
[3] “Ser coletivamente livre é viver no meio de homens livres e ser livre pela liberdade deles. O homem, já dissemos, não poderia tornar-se um ser inteligente, dotado de uma vontade refletida, e, por conseqüência, não poderia conquistar sua liberdade individual fora e sem o concurso de toda a sociedade. A liberdade de cada um é, portanto, o produto da solidariedade comum. Mas essa solidariedade, uma vez reconhecida como base e condição de toda liberdade individual, evidencia que, se um homem está no meio dos escravos, ainda que fosse seu amo, seria necessariamente o escravo de sua escravidão, e só poderia tornar-se real e completamente livre por sua liberdade. Portanto, a liberdade de todo o mundo é necessária à liberdade; daí resulta que não é absolutamente verdadeiro dizer que a liberdade de todos seja o limite de minha liberdade, o que equivaleria a uma completa negação desta última. Ela é, ao contrário a sua confirmação necessária e sua extensão ao infinito.” BAKUNIN, Mikhail. Catecismo Revolucionário: Programa da Sociedade da Revolução Internacional. São Paulo: Editora Imaginário, 2009a: 76.
[4] Cf. BOOKCHIN, Murray. Anarquismo, Crítica e Autocrítica. Editora Hedra, 2011.
[5] Pedido que Makhno obviamente negou. Afinal, na Ucrânia não havia nem escolas para os camponeses. Esta história é relatada com maior detalhes no excelente livro de Anatol Gorelik. GORELIK, Anatol. El Anarquismo y La Revolución Rusa. Buenos Aires, Utopia Libertaria, 2007.
[6] Cf. DANTON, 2011.
[7] O Livro Vermelho: Yomango, pp. 21. Disponível em <http://brasil.indymedia.org/media/2007/10//398527.pdf> Acessado em 03/08/11.
[8] Idem.
[9] Lembremos os clássicos que sussurram em nossos ouvidos: “Não podemos ser livres num mundo de escravos.”, já tinha dito Bakunin.
[10] Vemos que o problema não é novo, Malatesta escrevia em relação a um grupo de individualistas italianos: “ eles ridicularizavam o 1º de Maio, a greve geral, a organização dos trabalhadores e a anarquia. Pregavam o roubo em si mesmo, inclusive e sobretudo contra os camaradas e contra os pobres, e diziam-se comunistas. [...] Defendiam todo absurdo que a estupidez dos inconscientes ou a maldade dos inimigos teriam atribuído aos anarquistas, e diziam que isso era pura anarquia.” MALATESTA, Errico apud MINTZ, Frank in Anarquismo Social, Editora Faísca, 2006: 46.
[11] Cf. DANTON, 2011: 103.
[12] Idem.
[13] Idem.
[14] Idem.
[15] Devo esta excelente analogia ao anarquista Luigi Fabri.
[16] Cf. CORRÊA, 2008.
[17] Sirvo-me do conceito castoriadiano de heteronomia, que mesmo sem dizer, deve muito ao arsenal teórico anarquista, em específico à Mikhail Bakunin. Sobre a heteronomia, Cf. CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. 2ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.
[18] Segundo Jung, o termo mais
adequado seria dizer que são os complexos que nos possuem e não o
contrário. Sobre o conceito de complexo, Cf. JUNG, Carl. O Eu e o
Inconsciente, Editora Vozes, Petrópolis, 1979.
[19] ARCHINOV, Piotr. Historia Del Movimiento Makhnovista. Buenos Aires, Utopia Libertaria, 2008.
[20] Este é o nome do título da Editora Hedra, o título original é “Anarquismo social ou anarquismo de estilo de vida”.
[21] Recordo-me de um caso onde não
havia contexto algum em se promover um determinado ato de rua, pela
quantidade irrisória de participantes. Um “líder oculto”, mas que me
pareceu extremamente visível naquele momento, jogou com dois
sentimentos. O primeiro foi o de martírio e o sentimento de culpa.
Deveríamos realizar o ato independente da conjuntura, já que “era
preciso fazer alguma coisa”, mesmo que isto significasse alguns riscos
coletivos aos seus participantes. O segundo dizia respeito a covardia
em não se fazer nada. Pareceu-me visível, que naquele momento o pequeno
grupo era coagido a atuar sob a liderança oculta, do “corajoso” líder e
não conseguia se desvincular daquela nefasta influência, muito mais
psicológica e afetiva, do que propriamente fruto de uma discussão
coletiva e política. Percebendo a manipulação (in)consciente, decidi
não participar do “jogo”.
[22] FREEMAN, Jo. A Tirania das Organizações Sem Estrutura, 1970. Disponível em http://www.nodo50.org/insurgentes/textos/autonomia/21ti…a.htm. Acessado em 03/08/11
[23] O “libertário” Malatesta em total concordância com o “autoritário” Makhno nos diz: “Certamente
eu apóio a visão de que qualquer um que se associa e coopera com outros
por uma causa comum deve: coordenar suas ações com a de seus
companheiros e não fazer nada que prejudique a ação dos outros e,
portanto, a causa comum; respeitar os acordos feitos – exceto quando
pretendem deixar a associação por diferenças de opinião, mudança de
circunstâncias ou conflito sobre os métodos escolhidos tornam a
cooperação impossível ou imprópria. [...] E agora, ao ler aquilo que
dizem os companheiros do XVIIIº eu vejo-me em acordo substancial com a
sua maneira de conceber a organização anárquica (muito longe do
espírito autoritário que a “Plataforma” parecia revelar) e estou vendo
confirmada a minha esperança de que sob diferenças de linguagens se
encerra verdadeiramente uma identidade de propósitos.” MALATESTA, Errico. Em http://www.alquimidia.org/farj/index.php?mod=pagina&id=4028. Acessado em 05/06/2011
[24] MALATESTA, Errico. Anarquismo e Anarquia. Em http://www.anarkismo.net/article/11714 Acessado em 06/06/2011.
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